Entrada
Vivenciar a crise criativa de Hollywood está se equiparando a mesma frustração de luto que é pedir uma comida diferente pelo iFood e abominar. Algumas séries se destacam em um caldeirão de opções paridas por uma inteligência artificial sem a mínima vontade de viver. Neste vai e vem de “tanto faz”, The Bear (O Urso, no Brasil) entra como uma das opções 5 estrelas em um filtro em que você não encontra espaço de descaso, falta de sentido e carência de desenvolvimento de personagens.
A 2ª temporada de O Urso funciona com uma experiência em um restaurante alternativo recém-premiado. Assim como fez na 1ª, Christopher Storer aproveita muito bem os elementos disponíveis ao seu redor e realça seus sabores com os melhores ingredientes do mercado hollywoodiano. A ideia de drama é aprimorada e, ao invés de despejar esse líquido espesso todo de uma vez, a produção os separa em partes para realçar as notas de solidão, angústia, raiva e uma frágil alegoria.
Uma das melhores características em The Bear é como as pessoas encaram suas versões mais podres em prol de um bem quase que coletivo entre elas. Assim, dominadas por atores que encrustaram seus fardos à flor da pele, essas personas ganham mais tempo de tela. Um tempo esse que é suficiente para laçar a legitimidade de assumir o favoritismo do público em meio a uma guerra de mau caratismo interna.
Carmy (Jeremy Allen White) mostrou ser um excelente chef no comando da 1ª temporada, mas seus dias como o piloto da obra ficam contados durante a segunda etapa. Sydney (Ayo Edebiri) traz uma presença enorme para um roteiro que ainda usa um gancho para elaborar o recheio: as vidas de Tina (Liza Colón-Zayas), Richard (Ebon Moss-Bachrach), Natalie (Abby Elliott) e Marcus (L-Boy).
Prato principal de The Bear
O que torna a 2ª temporada de O Urso tão notável é a maneira como as principais pautas são trabalhadas ao longo dos episódios. Dessa forma, em volta do holofote do amadurecimento dos personagens, seus problemas do passado criam um espectro de heróis que merecem sustentar suas novas narrativas. Nesse sentido, quem não comia nada vai ganhar um prato fundo para o self-service à vontade, já quem comeu muito vai fazer bom proveito da sopa de ossos no final.
Diante do processo de amadurecimento masculino, experimentamos uma família que vive o conflito da ausência de um pai. A falta da figura masculina é uma metáfora direta a esse tipo de arquétipo dentro da temporada. Uma família de ursos, que quase não abre espaço para diálogo, é obrigada a rever sua postura bárbara e machucada. Assim, um vínculo de legitimidade surge ao ver um conflito interno de quem não aceita amor e não sabe recebê-lo aprendendo a evitar armadilhas sentimentais de uma traíra assada com bastante espinhos.
A presença de Richard Jerimovich (Ebon Moss-Bachrach) vem de forma avassaladora explicar esse ponto da masculinidade frágil e do seu duelo com o mundo. Em um conflito eterno com Taylor Swift, o personagem é obrigado a sair da casca de americano médio para criar responsabilidades que dependem de afeto. Por outro lado, Pete (Chris Witaske), marido de Natalie, se posiciona como um ponto fora da curva, sendo um exemplo de positividade tóxica para uma família que desconhece amor em sua origem.
Ainda neste banquete de gulosice, Syd (Ayo Edebiri) surge com outro ponto de vista da história. A garota, que começa sua jornada como tiete de Masterchef, se vê equiparada ao melhor chef do mundo nos quesitos sentimentais e profissionais. O conflito interno com sua família não a impede de quase nada, apenas sua relação com o mundo e sua fome de ser a melhor as motivam em prol de algo que ela sequer saber se vai acontecer.
Em contrapartida, Natalie (Abby Elliott) surge como quem não quer nada mas acaba levando as sobras para casa. A atriz constrói sua personagem de forma penosa nos primeiros momentos, mas consegue recuperar antes mesmo das últimas horas de temporada. Como um ponto que intermedia o caos entre os homens, Natalie vem como uma figura quase materna, angelical, porém perdida. Assim, adicionamos no cardápio uma personagem que mais parece um canhão de sentimentos mal canalizados.
Para quem não gosta de toda atenção, essa temporada traz luz a Tina (Liza Colón-Zayas) e Marcus (L-Boy) que pegam as coxas de frango mais recheadas da mesa. Os dois personagens passam grande parte da 1ª temporada quase como antagonistas, criando sentimentos de antipatia e estranheza. Portanto, aqui conseguimos pensar até mais profundo: a oportunidade que lhes foi roubada a vida toda. Tina é uma mulher latina que sobreviveu da forma que foi possível enquanto Marcus driblava mil problemas familiares para sobreviver. Logo, a série os mostra como merecedores de um prêmio que sequer sonharam na vida, uma sede imensa em um balde de vinho que requer renúncia de hábitos e afetos do passado.
Por fim, Carmy se contenta com os restos de um banquete que ele mesmo preparou. O chef mundialmente famoso é um glossário absurdo de receitas e traumas que marcaram mais que suas tatuagens. O chef Berzatto está mais explosivo ainda e parece se importar cada vez mais com o tempo. Isso porque não há tempo para ele. O restaurante é sempre sua prioridade e as horas passam para que seus problemas entornem o que sobrou do caldo quente em si próprio. Carmem é uma bomba humana prestes a explodir.
Um dos pontos mais fantásticos dessa dependência familiar é a presença de tio Jimmy (Oliver Platt), que tenta tapar os buracos da falta de um pai. Uma postura mafiosa e ao mesmo tempo acolhedora, dosando cada quantidade de amor e carinho que o caos dos seus sobrinhos merecem diante de alguém que pode ser visto com o chefe da família.
Nesse sentido, a 2ª temporada nos obrigada a lidar com as mais diversas personalidades dispostas na série. Enquanto os personagens vão se despindo de suas piores versões por dentro, vemos uma barulhenta expressão por fora. O processo de mudança é doloroso, requer reflexão, calma, renúncia e principalmente muita quebradeira. Logo, o que parecia ser um processo silencioso ganha takes contínuos em que o The Beef é totalmente destruído para dar espaço ao The Bear, fazendo analogia com a mutação – seja ela do elenco ou do rumo da produção.
Sobremesa (à la carte)
Não bastava produção, direção, roteiro e fotografia. O Urso engloba mais drama nas suas relações, constroi arcos de heróis convincentes e antagonistas que mudam a órbita para nos fidelizar ao restaurante. Logo, a série se utiliza de gatilhos que nos despertam completa atenção com a nata mais preparada de Hollywood:
- Molly Gordon (Booksmart e Good Boys), como Claire;
- Will Poulter (Midsommar e Guardiões da Galáxia), como Luca;
- Jon Bernthal (O justiceiro e The walking dead), como Michael Berzatto;
- Jamie Lee Curtis (Halloween e Tudo em todo lugar ao mesmo tempo), como Donna Berzatto;
- Bob Odenkirk (Better Call Saul), como Tio Lee;
- Sarah Paulson (American Horror Story), como Michelle;
- Olivia Colman (A favorita e Fleabag), como Chef Terry.
Além do elenco de primeira fileira do Oscar, as cenas que contemplam restaurantes de Chicago foram filmadas em restaurantes reais com o mesmo escopo de funcionários. Isso tudo aconteceu em prol da originalidade e da verdade por trás dos planos da produção. The Bear foi pensada para ser um drama familiar com o pano de fundo de um restaurante. A trama já estava bastante verídica, portanto o fundo também deveria estar.
Por consequência, o plano de tornar a produção ainda mais rica é capaz de adoçar toda estrutura de sentimentos que um espectador é capaz de sentir. Os convidados extras adicionam sentimentos, trazem notas provocativas que influenciam o roteiro e fazem você implorar para mais participação em uma próxima oportunidade.
É dessa forma que O Urso constrói toda dependência na sua 2ª temporada. A súbita loucura de Donna, mãe de Carmy, é viciante e pede por redenção, seja ela como for. A força e sabedoria de Luca e Chef Terry com seus personagens transforma compaixão em paixão. O amor de Claire por Carmy é reconciliador e pede por um desfecho. Em suma, a dinâmica colaborativa funciona tão bem quanto tomar um copo de água gelado depois da sobremesa mais doce da padaria.
Fecha a conta!
A 2ª temporada é de longe uma consagração que a série é uma das mais bem pensadas e bem trabalhadas no contexto atual. Não há problema algum em misturar texturas, sabores e pratos. A dificuldade é fazer isso bem feito, com coerência e com um conceito que não deixa tudo em aberto.
Pela primeira vez, vemos o sucesso profissional de Carmy sendo colocado de lado. Em meio ao desastre, um pedido de ajuda a Syd começa dar os primeiros passos em direção a um senso de comunidade que tomaria proporções enormes com o passar dos episódios. Logo, Mikey sai de cena para dar espaço ao futuro. Um futuro esse que se constrói remoendo e revivendo traumas do passado que não podem gastar muito tempo de tela devido à contagem regressiva.
Por conseguinte, se todo segundo importa, The Bear deixa bem claro que tudo se trata de tempo. A reconstrução leva tempo, feridas levam tempo, rancores levam tempo e sucesso meia boca também. Assim, é nesta 2ª temporada que vemos que alguns conceitos vão sendo revistos e remodelados, mesmo que usem fórmulas prontas do mundinho Hollywood, para uma possível 3ª temporada.
Se uma mesa para dois era solitária, a produção nos mostra que duas mesas tamanho família é o suficiente para todo mundo comer, se divertir e evitar jogar garfos nos convidados. Nesta 2ª temporada, a FX nos prova que sopa não é janta. O mesmo de sempre enjoa. A conta não fecha mesmo, às vezes.
No Brasil, você pode assistir a os episódios de O Urso no serviço Star+.