Depois de sua corrida nos cinemas, O Mal Que Nos Habita (Cuando acecha la maldad, ou When Evil Lurks no título internacional) é sem sombra de dúvidas a melhor pedida para quem busca uma sessão inédita e tensa, agora presente em streamings como o da Netflix. Produção argentina de 2023, o trabalho do diretor e roteirista Demián Rugna explora caminhos dentro de um cotidiano especulativo para trazer choque proveniente da brutalidade.
Tudo começa a dar errado logo de cara, quando os irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimi (Demián Salomón) encontram na propriedade rural vizinha um homem em estado deplorável infectado pelo demônio. Sem saber ao certo como proceder, eles procuram um outro vizinho, Ruiz (Luis Ziembrowski), que logo opta por levar o enfermo para longe dali e salvar a região de todo o mal a ser liberado pelos seus poros e secreções.
When Evil Lurks: maravilhosamente escatológico
O final desta sinopse pode soar nojento, mas é porque O Mal Que Nos Habita lança mão de cenas do tipo com certa frequência. Algo no nível do excelente A Morte do Demônio: A Ascensão, mas com uma abordagem mais calcada em elementos do cotidiano rural e sul-americano, como bem sabe fazer o cinema argentino independente se está contando uma história de terror ou de drama (neste caso, é um pouco das duas coisas). Então saiba que, acima de qualquer profanação, cenas putrefatas estarão à sua espera e isso torna a experiência pra lá de desafiadora de um modo interessante.
Ao assistir, acabei cometendo o erro de superestimar demais a subjetividade que a história poderia entregar, e isso prejudicou meu devido entendimento de como funciona a mitologia criada por Demián Rugna para esta obra. A primeira coisa a se entender é a de que Cuando acecha la maldad não se passa numa realidade tal qual a nossa: ambientada numa Argentina alternativa, é antecipado ao enredo do filme algumas peculiares diferenças como uma aceitação institucional de que demônios estão entre nós no cotidiano mediante possessões. Isso por si só é algo doido, mas totalmente coerente se pensarmos em como convivemos sabendo da alta possibilidade de morte nos recentes tempos de pandemia.
Para sacramentar essa diferença da realidade de Rugna para a nossa, é informado que as igrejas simplesmente acabaram. Como o longa se concentra numa região muito específica do mundo, essa informação acaba servindo apenas para reforçar o quão forte anda o Diabo e sua turma, porém, diferentemente do Brasil (um estado laico – pelo menos em teoria), a Argentina é institucionalmente pautada pela religião católica… então não é pouca coisa quando afirmamos que a casa de Deus apenas veio abaixo. Ainda assim, temos algumas cutucadas críticas por parte do diretor nas igrejas caça-níquel, aquelas que chegam a contratar atores para fingirem ser pessoas possuídas e impressionar o público fiel, disposto a contribuir com o dízimo e “ajudar com a obra”.
O Mal Que Nos Habita é o que, afinal?
É nesse contexto que os irmãos estão inseridos, sendo que Pedro entende que precisa resgatar seus filhos e a ex esposa para fugirem dali, longe do mal. Acontece que ele não entendeu que o maior problema é a presença dele próprio, Pedro, nos lugares, aos quais ele está simplesmente levando toda a infecção maligna adquirida pra si. Neste momento, o roteiro bem amarrado de Demián Rugna passa a explorar alguns aspectos interessantes. Primeiro, como lidamos num momento de fuga quando um dos filhos é uma pessoa com TEA? E mais: como seria se essa mesma pessoa fosse possuída? O diretor e roteirista anda muito bem nesta corda-bamba, que poderia muito bem ter rendido acusações e tentativas de cancelamentos. É o tipo de ideia que Hollywood não aborda por falta de coragem, mas que ao mesmo tempo certamente renderia reações condenatórias – algo ótimo para o debate, há de se admitir.
As regras estabelecidas como a necessidade de cessar o uso de aparatos eletrônicos ou mesmo armas de fogo para se combater o mal acaba rendendo bons momentos, além de impor desafios ao enredo, impedindo assim de que soluções mirabolantes ou deuses ex machina apareçam do nada. Esses impeditivos conversam bem com a proposta do projeto, que visa uma abordagem pés no chão em sua ambientação rural.
Um terror road movie dotado de brutalidade e escatologia, O Mal Que Nos Habita (When Evil Lurks) tem o potencial de colocar seu diretor entre os artistas a serem notados daqui para frente, com uma entrega bem amarrada, sem deixar de lado a bem-vinda ousadia que as grandes produções do terror podem conter.