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O Iluminado

Quatro décadas se passaram desde o lançamento de O Iluminado, adaptação da obra homônima de Stephen King por Stanley Kubrick para os cinemas. Porém, mesmo 1980 estando distante, e à luz da declarada rejeição ao filme por parte do criador da história original e aos problemas pelos quais o projeto passou para ser lançado, o longa é um clássico absoluto na história do terror. E do cinema.

Motivações para assistir a produção não faltam, obviamente. Além de trazer para as telonas a interessante premissa do enredo criado pelo Rei do Terror (e se o terror tiver um rei, o nome de Stephen King sempre estará na discussão) com certa respeitabilidade, isso é feito por um dos maiores nomes da história do cinema, já que outros clássicos como Laranja Mecânica (1971), Nascido Para Matar (1987) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), além de outros não tão conhecidos – mas também sensacionais – como Glória Feita de Sangue (1957), ganharam as salas do cinema a partir da genialidade de Kubrick. A principal das motivações, no entanto, talvez seja seu protagonista, ou melhor, o ator Jack Nicholson, que, por alguma iluminação do destino, interpreta alguém com mesmo nome que o seu.

A trama dá conta de Jack Torrance (Nicholson) e sua família indo morar por alguns meses isolados em um hotel, que fica fechado devido a forte nevasca que atinge a região, precisando assim de alguém para ligar os geradores de tempos em tempos e promover a manutenção do local pelo período de recesso. Torrance aceita o trabalho pois parece a ambientação perfeita para ele ganhar algum dinheiro enquanto tenta tirar sua carreira de escritor do ostracismo, porém, conforme o isolamento se acentua, sua esposa Wendy (Shelley Duvall) e seu filho sensitivo Danny (Danny Lloyd) passam a sofrer as consequências da influência do hotel sobre Jack.

Mas o que faz de O Iluminado um clássico?

É pela presença de Nicholson que entendo a mudança mais significativa do livro para o cinema: o personagem Jack Torrance. King tem razão em contestar que aquele que antes era um bom pai, mas outrora fora corrompido pelo alcoolismo e posteriormente pelo Hotel Overlook, se tornou nas telonas um ser repugnante já de início – com direito a sugestões de abuso sexual para com o filho. E levando em conta que muitos autores consideram cada livro como um filho que colocou no mundo (e Stephen King pode ser considerado o Mr. Catra da literatura), esta obra possui peso ainda maior pois contém nela diversos problemas pessoais pelos quais Stephen passou.

Tretas a parte, e voltando à genialidade de Stanley Kubrick, salta aos olhos o modo como as cenas de O Iluminado são colocadas para o espectador – méritos para o roteiro escrito com Diane Johnson. Sabe aqueles filmes de terror/suspense que assistimos, até os dias atuais, que nos deixam irritadíssimos por conta da burrice dos personagens (ao ponto de gritarmos “atrás de você!” para a tela)? Esses defeitos não acontecem aqui, tamanha a precisão e coerência dos personagens, levando em conta o contexto. Isso fica nítido principalmente com a mãe, Wendy, que sofre com a violência do marido das mais variadas formas. Sua suposta fragilidade (impressão causada principalmente pela aparência pálida e um tanto contraída em sua timidez) fica pelo caminho quando observamos todo seu esforço para manter aquela dinâmica de isolamento num nível saudável – mas que toma a decisão de não confiar mais na sanidade do marido no momento certo.

Um excelente desempenho de Shelley Duvall, que hoje sabemos ter sofrido o pão que o diabo amassou durante as gravações. O fato de reconhecermos as qualidades da obra não pode esconder todo o trauma causado na atriz, que se desentendeu por vezes com o diretor. Claro que desavenças são comuns, mas o estilo perfeccionista de Kubrick passou dos limites ao criar, mediante a mobilização de toda a equipe, um cenário de isolamento em Duvall para que fosse emulada as sensações que a personagem passa ao longo do filme, sem contar as exaustivas tomadas que eram gravadas. Essa falta de ética foi confirmada pela própria filha do cineasta, Vivian Kubrick (que atuou em alguns filmes do pai e também já dirigiu). Felizmente, após um sumiço de Hollywood por duas décadas, Shelley retornou a atuar em The Forest Hills, filme que chega em algum momento de 2023.

Quais temas o filme e quem é o iluminado do título?

É impressionante como muitas obras se tornam ainda mais aterrorizantes quando damos conta de que os assuntos do filme são mais mundanos do que parece. A violência doméstica, o racismo e a xenofobia são alguns dos atributos canalizados em Jack Torrance tornando-o um personagem pra lá de asqueroso, porém, totalmente compatível com a nossa realidade. Mas toda essa negatividade ganha proporções ainda maiores quando a influência do Hotel Overlook aumenta.

Essa carga espiritual do hotel, diga-se de passagem, é explicada pela chegada daquele que é o principal personagem da trama: o filho Danny, que é o iluminado do título. Por ser uma criança diferente das demais, ele acaba despertando entidades adormecidas, mas que chegaram a esse ponto através da violência, que é o que pode explicar o porquê do local ser como é, uma vez que desde a sua construção ocorreu o massacre de povos indígenas que eram contra o empreendimento, que injustamente invadiu seu território que antes era um cemitério. Supõe-se, desse modo, que os assassinatos ocorridos posteriormente dão conta da maldição do Overlook vindoura desde sua concepção.

As cenas aéreas (numa época na qual os drones ainda não eram uma realidade) principalmente no início, a forma como se dão os enquadramentos e a captura de Jack por diversos ângulos são alguns dos exemplos de como a coisa é bem feita em O Iluminado. Outra técnica de filmagem que se tornou icônica é a câmera acompanhando o movimento que Torrance faz com o machado, lá pro final do filme, quando usa a arma branca para tentar atacar sua família.

Mistérios que garantem a longevidade da obra de Stanley Kubrick

Vale ressaltar também, a força que a produção ganhou ao longo dos anos com as subjetividades e insinuações que a filmografia deixa para seu espectador, como o labirinto ao lado de fora do hotel representando a conexão da vida familiar, que Wendy e Danny transitam tão bem enquanto Jack se perde totalmente no local.

A foto no mural do hotel, ao final do filme, é, sem dúvidas, um dos principais pontos de interrogação da história do cinema, que por sua vez, sugere que a alma de Jack foi sugada pelo hotel, fazendo com que ele reencarne e retorne ao local para promover suas barbaridades de tempos em tempos. Mas há ainda muitos outros mistérios como a já citada possibilidade de abuso sexual por parte do pai, reforçada de certo modo na cena em que Wendy, num momento de aflição, presencia uma cena de sexo oral entre duas pessoas que não deveriam a princípio estar ali.

Mas esses mistérios merecem um texto especial para cada um deles (acesse a nossa página exclusiva do filme aqui). No mais, recomendo demais que confira este clássico do cinema, que, mesmo passando por problemas para sua concepção, entrega uma experiência única e interminável na mente do espectador.

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