O Gambito da Rainha é uma daquelas séries que, para funcionar, os produtores precisam ser certeiros na escalação da protagonista. Pra sorte da Netflix, que comandou o projeto de apenas 7 episódios, Anya Taylor-Joy (Fragmentado; Emma) topou o desafio e o resultado é uma jornada que, mesmo não apresentando nada de novo, joga seguro abusando do talento e carisma da atriz.
Na minissérie, baseada na obra do falecido escritor Walter Tevis, somos levados pela história fictícia de Elizabeth Harmon, uma garota de 9 anos que sofre um grande trauma ao perder sua mãe num acidente de carro (em que estava presente) e vai parar em um orfanato onde desenvolve uma prodigiosa habilidade como jogadora de xadrez. Iniciando nos anos 60 com Beth Harmon já como enxadrista respeitada nos Estados Unidos – acordando de ressaca para um grande desafio –, logo voltamos no tempo para conhecer toda sua trajetória até ali.
A produção começa a mostrar suas ótimas jogadas já nos primeiros movimentos. O episódio inicial inteiro é dedicado à passagem de Beth pelo orfanato – aqui a personagem é interpretada pela jovem atriz Isla Johnston – e como ela é tocada pelo xadrez, que entra em sua vida através do senhor Shaibel (Bill Camp), zelador da instituição e um apaixonado pelo jogo que enxerga na garota um talento incomum.
A passagem pelo orfanato nos revela ainda o início de sua dependência química por pílulas tranquilizantes, onde a personagem encontra uma espécie de refúgio e acredita abrir a mente para seu brilhantismo. Todo esse começo acrescenta camadas à jovem-prodígio e contribui para tornar sua tortuosa jornada mais engajante. A cada passo do roteiro, ficamos na torcida pelo seu sucesso, que inclui a superação dos vícios – o álcool também se torna um deles – e o título como melhor jogadora de xadrez de seu tempo.
Claro que aqui o autor fez questão de enaltecer a figura feminina. Não foi à toa a escolha para que sua personagem fosse uma mulher nos anos 60 tendo que romper com preconceitos de um esporte (como tantos outros) comumente dominado por homens. Nessa mesma época, na vida real, Bobby Fisher era o grande nome do xadrez americano. Tavis certamente se inspirou em Fisher subvertendo seu gênero para desenvolver o livro.
E se é para destacar a força de uma grande mulher, bora escalar uma atriz de talento pra isso. Foi exatamente o que a Netflix fez ao colocar Taylor-Joy como dona do jogo. A atriz possui um magnetismo quase surreal em cena, revelando uma personagem cheia de conflitos internos – oriundos das inúmeras perdas que teve em sua vida –, mas extremamente contida na forma de externá-los. Com isso, temos uma atuação que faz muito uso do trabalho corporal – repare no olhar-palavra da atriz. Não será nem um pouco surpreendente se Taylor-Joy arrastar algumas estatuetas na próxima temporada de prêmios.
Pegando-nos de surpresa, a minissérie traz ainda alguns rostos familiares. Um deles é o de Harry Melling (The Old Guard; O Diabo de Cada Dia), que não encontra muito espaço para brilhar – até por que Taylor-Joy não deixa. Sua participação em determinado momento ainda revela uma fragilidade do roteiro, que soa conveniente ao utilizar seu personagem, assim como o de Thomas Brodie-Sangster (Maze Runner; Game of Thrones) e Moses Ingram (Sis), como espécies de muletas para fazer a história andar de um jeito pouco inspirado.
Isso já não ocorre com a personagem Alma Wheatley, mãe adotiva de Beth interpretada por Marielle Heller (mais conhecida como diretora de filmes como Um Lindo Dia na Vizinhança), outra mulher de destaque dentro da trama. Por também carregar uma história de perdas, a dinâmica entre as duas (pessoas completamente diferentes) se encaixa muito bem e sustenta boa parte dos episódios. O drama de Alma também pode ser sentido e logo ela se torna mais uma figura a ganhar afeição do espectador.
Repleta de cacoetes comuns em cinebiografias, a minissérie segue a fórmula sem constrangimento. Pra compensar suas falhas narrativas, tecnicamente ela é impecável. Sua reconstituição de época é muito caprichada, com destaque para o excelente trabalho dos figurinistas. Outro elemento que se sobressai é a bela trilha sonora de Carlos Rafael Rivera, cheia de modulações que preenchem bem os espaços e sublinham com precisão os diversos momentos da vida da protagonista.
Extremamente competente também ao retratar o universo do xadrez – o ex-campeão mundial Garry Kasparov atuou como consultor, ajudando a tornar as partidas o mais verossímeis possíveis –, O Gambito da Rainha nos reserva um clímax de enorme catarse, frente ao rumo que a minissérie parecia estar tomando. Embora Elizabeth Harmon não tenha existido, a personagem é tão rica e densa que, ao subirem os créditos finais, eu duvido que você não carregue no imaginário o desejo de figurá-la entre os grandes mestres do esporte.