Os primeiros minutos do episódio piloto de Mr. Mercedes são brutais. Em pé de igualdade com a descrição literária feita por Stephen King, a cena fisga – ou assombra – o espectador e dá o acorde inicial do que vem por aí na história. É mais do que o crime que movimenta toda a trama, é a apresentação dos dois paladinos que protagonizam a batalha moral e psicológica do livro/série. Nem mesmo o fã mais fervoroso poderia sonhar com um início melhor.
Bill Hodges (o sempre ótimo Brendan Gleeson) é um ex-detetive ranzinza e consumido pelos pesadelos do maior crime não solucionado de sua extensa carreira. Sem quase nenhuma razão para acordar todas as manhãs, Bill é sugado para um turbilhão de estranhezas pelo assassino que nunca deixou de martelar em sua mente. Bill é a alma de Mr. Mercedes e a atuação de Brendan é crucial para a ótima primeira impressão da série. Já que o artificio do narrador não funciona aqui como no livro, é no olhar de Brendan que o espectador encontra uma janela para analisar todos os acontecimentos.
Do outro lado da moeda está Brady Hartsfield, o Assassino da Mercedes. Interpretado de forma contundente por Harry Treadaway (Penny Dreadful), o segredo de Brady também está no olhar. Por trás do disfarce do jovem franzino que conserta computadores, está um serial killer engenhoso e insaciável. Sua mente sádica busca por mais vítimas, mas não em qualquer circunstância. Por isso ele vai atrás de Bill, afim de também resolver questões abertas com o ex-detetive.
Além de simbolismos, a trilha sonora exerce uma função crucial em Mr. Mercedes. É assim que o produtor David E. Kelley (Goliath, Big Little Lies) apresenta mais nuances das personalidades dos protagonistas. Bill escolhe um vinil empoeirado de onde sai A Well Respected Man do Kinks. Já o rádio do carro de Brady toca no volume máximo Pet Sematary dos Ramones. Pare para analisar as letras e você entenderá muito mais sobre eles do que qualquer linha de diálogo poderia explicar.
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Mr. Mercedes, apesar de carregar a assinatura de Stephen King, se difere de boa parte das obras do escritor. Primeiro porque o mistério é revelado ao público logo no começo. Não é uma obra sobre quem matou, mas um mergulho nessa disputa entre Bill e Brady. E a série consegue transmitir a mensagem de que o foco está nos personagens e em suas ações e reações. Até as figuras secundárias possuem importância. Como Deborah (Kelly Lynch) a mãe de Brady e Ida Silver (Holland Taylor) que não existe no livro, mas que funciona como uma âncora de humanidade para Bill.
E em segundo lugar, porque não estamos diante de algo sobrenatural. Ainda que a trilogia em que Mr. Mercedes está inserida, composta por Achados e Perdidos e Último Turno, descambe para coisas além da nossa realidade, esse ainda é um mistério policial. Com características mais comuns do que gostaríamos de admitir.
No ano em que cinema e TV vasculham as gavetas de Stephen King, com novas versões de It e O Nevoeiro além da adaptação de A Torre Negra, Mr. Mercedes surge como uma das melhores adaptações dos trabalhos do escritor. Uma vitória para o Rei do Terror e seus fiéis seguidores.