Matrix Resurrections Matrix Resurrections

Matrix Ressurections: metalinguagem ou fanfic?

Vivemos na década (ou mais de uma década??) da nostalgia. Tudo o que a maioria das pessoas desejam das mídias é a volta daquele sentimento, aquele gostinho de infância, a renovação de todas as emoções que sentimos no passado com inúmeras obras maravilhosas. Dessa vez, a vítima foi Matrix e assim, 18 anos depois tivemos uma continuação,  o intrigante Matrix Resurrections – dessa vez dirigido apenas por Lana Wachowski.

O longa divide opiniões em ame ou odeie. Por um lado, Matrix Resurrections brinca com a própria criação, numa crítica aberta, escrachada e nada sutil sobre como funciona o sistema capitalista e o desejo das grandes corporações em criar, a todo custo, reboots ou continuações de grandes franquias, explorando a chamada metalinguagem, e criticando a si mesmo – a exemplo da piada com o bullet time. Não somente isso, como faz chacota do público que esperava um novo épico que redimisse a franquia do terceiro filme, considerado como o pior deles. Há diversas reclamações sobre as cenas de ação, à narrativa em si e, a mais recorrente: sobre ser uma fan fic romântica.

O novo filme traz uma exposição que parece desnecessária o tempo inteiro, quase uma autossabotagem, pois essas explicações excessivas trazem um recurso narrativo interessante, mas que pode ficar enfadonho depois de repetir em demasia.

O antagonista, diferente dos outros – se considerarmos as máquinas e Smith -, estuda e tenta compreender a natureza humana para que as máquinas possam, da melhor maneira, aproveitar-se dela, e vem numa roupagem interessante: a de um psiquiatra, uma das profissões mais demonizadas. Por um lado, pode ser problemático o “vilão” ser um profissional de saúde mental e, por outro, surge como uma ironia, uma crítica ao modo como as pessoas enxergam esse ofício. Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu falar sobre ir ao psiquiatra ser coisa de doido, sobre fazer uso de medicação ser algo negativo, entre outras depreciações. Aqui, o personagem de Neil Patrick Harris é o Analista, feito especialmente para prender as pessoas dentro de uma falsa realidade, reforçada pela medicação – as pílulas azuis. Na vida real, o papel desse profissional é o oposto: psiquiatras AJUDAM seus pacientes a lidarem com a realidade, amenizando sintomas que causam sofrimentos que são, muitas vezes, extremos e impedem que estes consigam ver além da própria dor. Em suma, eles nos dão pílulas vermelhas.

Neil-Patrick-Harris-em-cena

A crítica ao sistema capitalista se mantém firme e forte, sem brincar com mensagens dúbias que podem ser interpretadas de maneira mais ampla. Por exemplo, na época dos primeiros filmes, houve um burburinho e muitas especulações sobre a temática real ser uma analogia à transgeneridade de suas autoras, algo que FOI confirmado ano passado.

A trilogia nasceu de muita raiva e ódio, a raiva do capitalismo e da estrutura corporativa e das formas de opressão”, contou Lilly Wachowski. “A raiva fervente dentro de mim era sobre minha própria opressão, que estava me forçando a permanecer no armário. Eu sempre fiz as coisas que queria ver, mas agora estou aqui, uma mulher trans e orgulhosa”.

A ideia da figura messiânica também permanece, e é explorada de uma maneira um pouco diferente, uma vez que é mostrado, com todas as letras, que o messias nunca foi somente Neo. Se fizer uma recaptulação sobre o primeiro Matrix, podemos lembrar claramente que Neo só se torna o escolhido porque Morpheus acreditou e Trinity “o ressucitou”, digamos assim. E, enquanto todo mundo acha que o 4º filme é uma fan fic de amor, deveriam lembrar que em TODOS é visto que Neo não vive sem Trinity e vice-versa, a ponto dele escolhê-la em detrimento de Zion. O tempo todo é um salvando o outro, eles estão sempre juntos! A diferença é que o ponto central da trama dos outros filmes não parecia ser o amor deles, mas, se reassistir, tente prestar atenção nesse detalhe e se surpreenda. E, para além de ser um interesse amoroso de Neo, Lana incrementa a narrativa de Trinity de maneira satisfatória, ao menos para mim.

O foco, em Matrix Resurrections, passa longe de ser a ação, que é até mesmo evitada em diversos pontos, incluindo aí o haduken de Neo, ou o assunto favorito da Oráculo, as escolhas. Esse é, inclusive, um dos primeiros diálogos, no qual Bugs discorre sobre como a escolha é uma ilusão e só há, na verdade, uma opção, ao qual Morpheus concorda. Há também uma reclamação recorrente sobre o filme ser feito de flashbacks, ao qual eu discordo. Eles estão ali com um propósito específico, e não é para agradar ao fandom, disso podemos ter certeza. 

Outra coisa que o filme confronta é a binariedade que os antigos traziam, naquela ideia maniqueísta de que “se não está por nós, está contra nós”. O personagem Morpheus foi ressucitado basicamente para ajudar essa quebra de narrativa, ajudando Lana a contar algo importante sobre a vida: ela não é preto e branco, mas todas as cores do arco-íris e suas nuances. Se antes víamos relações de dependência entre máquinas e humanos – no qual um precisa do outro para se manter “vivo” -, agora existe uma parceria, pois nem todas as máquinas concordam com o sistema opressor exigido e passam a trabalhar junto com a humanidade, tornando o mundo real um local passível de evolução constante. Aqui, podemos incluir uma lição importante que o filme traz, e essa lição é a de que devemos manter o que nos faz humanos, sem sumirmos no meio de toda a tecnologia no qual estamos mergulhados cotidianamente – aspecto esse explorado pelo Analista.

Uma outra crítica colhida no meio do filme é sobre como a indústria do entretenimento é obcecada com a eterna juventude, demonstrada na cena em que reconstroem mais de uma vez os corpos de Neo e Trinity. Em um mundo cada vez mais obcecado pelo padrão hétero, branco, cisnormativo, é comum agora esbarrarmos em celebridades que eram lindíssimas fazendo a chamada “harmonização facial” e se tornando algo deformado e repetitivo. Se cirurgias plásticas eram exigidas no início do século XXI, em pleno 2022 elas são obrigatórias. E sabemos que tais agressões, porque sim, são agressões, são de amplo conhecimento das irmãs Wachowski.

 

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Smith faz uma aparição mais do que interessante, para mim, claro. Em uma situação muito parecida com a de Neo, sua participação é pontual e serve como um recurso narrativo que traz um ar fresco ao quarto filme da franquia, explorando detalhes que, nos filmes anteriores, deixaram algumas pessoas confusas. A melhor parte é a sua aliança com o protagonista, entendendo que a Matrix é uma ameaça a qualquer forma de liberdade – visto que fora dela, há paz, mesmo que corra um tico de perigo, mas nada que faça com que fiquemos alarmados de verdade -, liberdade essa que ele percebeu que poderia ter após Neo tê-lo “destruído” no primeiro filme e que tenta manter a todo custo nos outros, até o seu entendimento de que a ameaça não era o escolhido e sim o sistema que o havia criado e aprisionado.

Aliás, algo muito importante a ser destacado: pessoas com ideações suicidas e transtornos mentais devem ser avisadas que pode rolar um gatilho mais pra perto do final, no qual bots – só que, para quem tá vendo de fora, são pessoas – se jogam de prédios de cabeça. Para quem tem problemas com isso e for pego de surpresa, como eu fui, pode passar mal.

Enfim, poderia discorrer por muito tempo sobre o porquê Matrix Resurrections não é um sopro de ar fresco, mas é divertido ao seu modo – inclusive, a diretora dá uma brincada a mais nos efeitos especiais, no CGI e na expansão do universo criado. No mais, parem de levar as coisas tão a sério. Se nem a Lana levou, por que vocês iriam?