Primeiro romance de Neil Gaiman é relançado no Brasil em mais uma edição primorosa da Intrínseca
Lugar Nenhum data de 1997 mas há elementos suficientes para dizermos que a obra de Neil Gaiman é tão atual quanto qualquer outra do autor. Um novo mundo é apresentado aqui, uma Londres fantástica capaz de prender atenção não só dos entusiastas da capital inglesa, mas de qualquer um aberto às histórias de Gaiman (ou seja, conteúdo de qualidade em geral). E é com grande estilo que a Intrínseca traz novamente esse romance ao público brasileiro.
Em Lugar Nenhum, Richard Mayhew é um homem simples de coração bom que tem a vida transformada quando ajuda uma jovem que encontra ferida numa calçada. De um dia para o outro, Richard se torna invisível na Londres que sempre conheceu: não tem mais trabalho, não tem mais noiva, não tem mais casa. Para recuperar sua vida, ele se embrenha em um mundo que nunca sonhou existir, uma cidade que se abre nos esgotos e nos túneis subterrâneos: a chamada Londres de Baixo, em que personagens únicos e cenários mirabolantes fazem a Londres de Cima parecer uma mera paisagem cinza.
Londres de Baixo
A tal Londres de Baixo é elaborada de forma muito orgânica, não só por tomarmos conhecimento dos detalhes através do protagonista, mas sim pela própria ideia (trabalhada constantemente por Neil Gaiman) do esquecimento. Tudo que é deixado para trás pelos habitantes de cima pode acabar lá de alguma forma, seja um televisor antigo, relógio, sapato, ou até a poluição do já despoluído Tâmisa (o espaço/tempo também age de modo incomum nesse mundo subterrâneo). Alguns pontos factuais são adaptados para a Londres de Baixo a partir dessa premissa, dando contornos didáticos mas não enfadonhos a Lugar Nenhum.
Mesmo parecendo um tanto pesado pela ambientação, o humor está afiadíssimo aqui e é por esse meio que desenvolvemos grande afeição por alguns personagens, como o próprio protagonista, também o marquês De Carabás e seu largo sorriso, além dos capangas Croup e Vandemar, completamente diferentes mas alinhados a respeito das atrocidades que cometem.
Há grande reflexão a respeito dos moradores de rua, em como são notados e, quando são, sofrem com a aversão da sociedade. Nesses momentos a história deixa um pouco de lado o humor para mostrar uma incrível e muitas vezes necessária sensibilidade. A partir disso podemos ressaltar que outro aspecto interessante do livro é também seu clímax, levemente deslocado do clichê embate entre opostos. Na verdade, o ponto alto é o teste que Richard passa para conseguir a chave em posse dos Monges Negros. É esse o momento crucial onde entendemos de modo pleno a proposta de Lugar Nenhum, e consequentemente podemos diferenciar Gaiman de outros atores.
Pesa contra a falta de profundidade de alguns personagens onde claramente caberia mais coisas, como Door. São poucas as figuras fora da curva aqui, até mesmo as viradas na trama são previsíveis (mesmo que legais) ou então entregues com muita antecedência.
A edição visitada da Intrínseca (com tradução de Fábio Barreto) é uma atração à parte. Tanto o material de capa quanto a arte segue o padrão estético usado em Os Filhos de Anansi. Há o sempre bem vindo conteúdo adicional com dois trechos inéditos (um da dupla Croup e Vandemar e outro do incrível marquês De Carabás), um prefácio fresquinho do próprio Neil Gaiman e um mapa do metrô de Londres. Indispensável para os fãs – e por um preço camarada. Lembrando que Deuses Americanos ganhará uma nova edição nesses moldes dia 24 de outubro de 2016.