Love, Death & Robots, a mais nova antologia de animações da Netflix, traz uma grande inovação para o streaming: 18 animações feitas por estúdios diferentes, cada uma com seu estilo e enredo próprio. A última vez que vi algo assim foi com Animatrix, uma série de animações inspiradas no universo de Matrix, lançada em 2003. Mas apesar de ser uma obra única e inovadora, a produção da Netflix possui um sério problema: é sexista de uma forma bastante ultrapassada.
Love, Death & Robots é produzida por Tim Miller (Deadpool) e David Fincher (Clube da Luta) e todos os episódios procuram contar uma história de ficção científica, alguns mais do que outros. Apesar da grande diversidade de personagens e uma quantidade boa de protagonistas femininas na série, que não existe nenhuma diretora mulher entre nos episódios. E isso gera os problemas que veremos a seguir.
Love, Death, Robots e Heavy Metal
Assistindo poucos episódios, podemos ver que a série possui uma grande inspiração da revista pulp iniciada nos anos 70, Heavy Metal. A revista geralmente trazia histórias de ficção científica, fantasia ou horror feitas por artistas e roteiristas diferentes. Como quase tudo de quadrinhos nos anos 80 e 90, a coletânea de histórias trazia duas coisas: violência e sexualização exagerada. E quando falamos de sexualização nos quadrinhos, é claro que falamos de mulheres objetificadas.
De acordo com Caroline Heldman, o conceito de objetificação teve início nos anos 70 e consiste em analisar alguém no nível de um objeto, sem considerar seus atributos emocionais e psicológicos. Podemos observar a objetificação da mulher em propagandas, por exemplo, que só focam no atributo sexual ou físico, sem outro tipo de apelo emocional.
E essa objetificação está na série em todos os momentos em que o corpo nu feminino é usado como ferramenta estética para deixar “a cena mais bonita”. A objetificação feminina não acontece somente quando vemos aquela cena clássica de filme de máfia em que os homens conversam sobre negócios em uma boate de striptease. Ela também pode acontecer com personagens protagonistas da história, que possuem um arco narrativo e personalidade. Todo momento em que uma personagem feminina é sexualizada ou aparece nua sem importância real para a narrativa, a objetificação acontece.
Outro problema de sua inspiração na revista Heavy Metal é a sua preocupação em chocar usando não só o nu (tanto masculino como feminino), mas também a violência extrema. A impressão que fica é que os episódios foram feitos por adolescentes querendo mostrar como eles são descolados por mostrar cenas com sexo e gore. Não me leve a mal, eu acho louvável a Netflix investir em algo que raramento veríamos em um canal de TV, mas acredito que o uso de sexo, nudez e violência dessa forma é algo que ficou no passado.
O sexismo escondido nos episódios
Por definição, o sexismo é uma atitude de discriminação fundamentada no sexo. Isso acontece todas as vezes que tratamos pessoas de forma diferente baseada no seu gênero. Quando paramos para analisar os episódios um a um, vemos como a série trata diferente homens e mulheres. A seguir teremos spoilers de alguns episódios.
Em A Vantagem de Sonnie (Sonnie’s Edge), à primeira vista temos uma protagonista feminina forte, provavelmente lésbica e que odeia homens. Mas a personagem tira a sua força de um estupro coletivo que sofreu no passado, uma ferramenta narrativa clássica e machista usada contra personagens femininas. Porque o trauma dessa personagem não poderia ser outra coisa? Porque usar logo o sexo? Além disso ela é enganada por outra personagem mulher que usa o sexo como arma, sendo somente um objeto do homem poderoso.
Em Para Além da Fenda de Áquila ( Beyonde the Aquila Rift), mais uma vez a arma da “vilã” da história é o sexo, usado para enganar o personagem principal. Aqui até temos um pouco o uso do corpo nu do homem como ferramenta estética, então não é tão problemático assim.
Boa Caçada (Good Hunting) é outro episódio que mostra uma personagem feminina forte, mas novamente aqui a sua força vem de ser abusada e vendida sexualmente. Além de aparecer geralmente pelada, tanto como animal (os furries adoram), humana ou máquina. A objetificação é tamanha que até sua versão robótica tem mamilos.
É interessante falar dos episódios O Lixão (The Dump) e Metamorfos (Shape-Shifters), nesses episódios o nu do homem é mostrado, inclusive os genitais frontais. Mas isso é feito de uma forma diferente, aqui o nu masculino é mostrado de uma forma tosca, bizarra e nada erotizada, dessa forma percebemos a forma como homens e mulheres são tratados diferentes nessas obras. O corpo nu da mulher é usado como algo belo a ser apreciado e o nu do homem é mostrado como comédia. Além disso, os dois episódios são alguns dos em que há 0% de representatividade feminina. Até mesmo em episódios simples como Histórias Alternativas (Alternate Stories), existem piadas envolvendo o nu feminino.
Mas o pior de todos é A Testemunha (The Wtiness), o episódio mostra uma mulher seminua durante toda sua história fugindo de um homem amedrontada. Essa ferramenta de mulheres sexualizadas em situações de horror é um clichê de filmes ou hqs de terror, é uma erotização bizarra que se mistura com o gore. Além disso, existe uma cena totalmente gratuita de BDSM que não acrescenta em nada na narrativa.
Claro que existem episódios onde temos personagens femininas fortes que não são nem um pouco sexualizadas, como em 13, Número da Sorte (Lucky 13) e Proteção contra alienígenas (Suits), mas comparando com a maioria dos episódios em que as personagens femininas são esquecidas, colocadas de escanteio ou sexualizadas, eles são poucos. Quando paramos para prestar atenção nos personagens masculinos, raramente vemos eles usando o sexo como arma ou sendo envolvidos em narrativas envolvendo sexo, sua força vem geralmente do poder militar, da inteligência ou força física. É aqui que vemos a diferença de como os homens e mulheres são tratados na antologia.
Love, Death & Robots é uma ótima adição ao catálogo da Netflix e mostra que o serviço está preocupado em trazer coisas diferentes. Mas acredito que deveria ter existido uma curadoria melhor dos episódios. Isso poderia tentar trazer uma representatividade maior não só nos personagens, mas também nas equipes que fizeram as obras. Dessa forma poderíamos ter mais episódios incríveis e menos histórias contadas de uma forma ultrapassada.
Ah, só para deixar claro que gostei da série, confira aqui a lista dos cinco melhores episódios da produção.