Herege: Hugh Grant não faz papel fofo em novo terror da A24 Herege: Hugh Grant não faz papel fofo em novo terror da A24

Herege: conquista na atuação, mas tropeça no roteiro

Hugh Grant instiga duas jovens mórmons a pensar sobre religião e fé

Cinema e religiosidade são temas que há tempos caminham lado a lado. Quem já assistiu a “O Sétimo Selo” (1957) certamente se recorda do cavaleiro que, ao retornar das cruzadas, clama por Deus em busca de sobrevivência, apenas para sucumbir à morte inevitável, abandonado. Herege busca uma abordagem igualmente filosófica sobre a fé, mas não necessariamente consegue cumprir o que prometeu.

A trama apresenta Sr. Reeds (Hugh Grant), um homem grisalho com ares sinistros, que recebe em sua casa duas adolescentes religiosas sob o pretexto de ouvir suas pregações. Contudo, as jovens acabam presas e submetidas a uma série de testes que deveriam pôr à prova sua fé. Mas será que essa proposta realmente convence o público?

Hugh Grant apresenta uma boa atuação, e Sophie Thatcher e Chloe East, que interpretam as adolescentes, também não ficaram atrás. Mas boas atuações não salvam roteiros que, ainda com uma boa premissa, apresentam furos de argumento. É inegável que questionar religiões acende debates intensos, mas o filme não aprofunda as reflexões que propõe.

Após a chegada das jovens na casa, elas são recebidas calorosamente e convidadas a entrar, mas por razões perguntam se há uma mulher presente. Após serem enganadas, as duas entram, mas logo percebem que estão presas. Sem escapatória, as duas precisam escolher entre dois portões, o da crença ou da descrença.

O filme acerta ao explorar a relação entre religião e cultura, sugerindo que ambas são produtos de uma herança de elementos anteriores. Mas senti a falta de um desenvolvimento mais extenso sobre questões cruciais – como fé, crença, descrença, o porquê de acreditar ou desacreditar.

Herege, com Hugh Grant, Sophie Thatcher e Chloe East
Créditos da imagem: Divulgação

Sr. Reeds discorre sobre como religiões, jogos de tabuleiro e músicas se repetem ao longo do tempo, traçando paralelos entre ciclos climáticos e eventos religiosos, como os solstícios marcando nascimentos divinos. Ele explora semelhanças entre deuses antigos e atuais, a persistência de jogos ao longo da história e a recorrência de padrões musicais entre diferentes épocas. Apesar dessas correspondências, ele ressalta que as semelhanças não anulam as particularidades das crenças, alinhando-se ao conceito de arquétipos desenvolvido por Joseph Campbell no livro “O herói de mil faces”.

Com a voz do Reeds, o roteiro fala sobre a música “The Air That I Breath” (The Hollies), que foi acusada como alvo de plágio da música “Creep” (Radiohead), que é a mesma banda que acusou Lana Del Rey por plágio, com a música “Get Free”. Nesse sentido, outro exemplo bem conhecido é do artista Gotye, que pagou US$ 1 milhão por usar o sample de “Seville”, do brasileiro Luiz Bonfá, em “Somebody That I Used to Know”. Há ainda Rod Stewart, que usou o refrão de “Taj Mahal”, de Jorge Ben, em sua canção “Da Ya Think I’m Sexy”. Esses exemplos reforçam o ponto de Reeds: a cultura humana é repleta de repetições, intencionais ou não.

Desde o início, fica claro que Sr. Reeds não busca provar ou refutar a existência de Deus, mas demonstrar que deuses são ferramentas de controle religioso e cultural. O personagem utiliza artifícios, enganações e demagogias, até mesmo de forma irônica, para provar seu ponto de vista. No entanto, a narrativa se perde quando o foco se desloca para testes de sobrevivência que lembram “Jogos Mortais”. As jovens, presas no porão, enfrentam desafios que deveriam reforçar o argumento do personagem, mas acabam desviando do debate central.

O debate sobre as questões pessoais que levam o indivíduo à crença, passa à escanteio. Experiências espirituais não são apenas sociais, o “religare” não diz respeito somente a uma comunidade de fieis em uma igreja, mas a uma necessidade pessoal de se reconectar com uma fonte de elevação e acalanto, muitas vezes transcendente, e isso possui um caráter profundamente pessoal. A crença é diferente em cada um. Claro, isso não é a premissa do filme, mas ignorar essa dimensão enfraquece o discurso de Reeds e limita o alcance filosófico do filme.

No fim, apenas uma das adolescentes permanece consciente e demonstra ter compreendido os testes e as lições de Sr. Reeds, concordando com ele sobre o papel controlador das religiões. O desfecho de “Herege” soou pouco dramático, refletindo a superficialidade do desenvolvimento da trama.

Embora tenha seus méritos, como boas atuações e reflexões pontuais sobre cultura e religião, o filme falha em construir um argumento coeso e envolvente. A narrativa beira o mediano, funcionando mais como um terror confortável do que algo que faz a gente dormir pensando.

Por ser uma produção da A24, é natural que se espere mais, mas o volume recente de lançamentos do estúdio pode justificar essa irregularidade. Ainda assim, o filme pode ser uma escolha válida para uma noite de terror despretensiosa.

Por: Hélio Mesquita.