Aproveitando o lançamento de Evangelion pela Netflix, fui re-assistir o clássico anime, agora apresentando para minha esposa. Com poucos episódios ela já manda a seguinte frase: “Esse garoto não tem o menor psicológico para pilotar esse robô”. Examinando essa frase e discutindo com ela mais tarde me fez refletir sobre esse personagem tão odiado da cultura pop. Shinji Ikari.
“O Shinji é insuportável!”
Quando assisti e li Evangelion pela primeira vez, como a maioria das pessoas, eu era um adolescente. As porradas de robô gigante, referências bíblicas e temas psicológicos pesados me pegaram de jeito e ele se tornou um dos meus animes favoritos. Apesar disso, existe algo muito comum nas pessoas que assistem a obra: Elas odeiam o Shinji.
Ele é muito chato. Que moleque insuportável. Ele é só um pervertido. Ele só sabe chorar e reclamar. Ele tem tudo que eu queria ter e não aproveita. Essas são algumas frases que ouvimos e dizemos durante anos sobre o protagonista da série. Mas é lógico, o cara pilota robôs gigantes, salva o mundo e ainda tem a oportunidade de morar com duas gostosas, uma na sua idade e outra mais velha, experiente. Mas apesar disso, ele é um chorão covarde, que não tem vontade de fazer nada e vive reclamando.
A verdade é que Shinji é um dos melhores protagonistas de anime, quiçá da cultura pop. O motivo para ele ser um personagem tão bem escrito é muito simples. Ele é humano e falho. Shinji é um rapaz de somente 14 anos, que provavelmente tem depressão e um trauma muito forte de ter sido abandonado pelo pai depois que a mão morreu. Ele tenta agradar a todos e vive sempre em conflito com seus próprios interesses. Ao ser abandonado pelo pai, ele sente a necessidade de agradar a todos a seu redor para que eles não o abandonem também.
Repito, ele é um garoto de 14 anos que tem uma responsabilidade enorme nas suas costas. Ele não consegue nem resolver seus problemas internos, como ele vai conseguir resolver problemas globais de salvar a humanidade? Shinji não se sente pertencente a lugar nenhum, não sabe o que quer, tem problemas com sua sexualidade e de se socializar com os outros. É bem deprimente né? Agora, quero que você faça um exercício e tente se lembrar de quando você era adolescente. Você conseguiu se identificar com esses problemas? Essa, então, é a chave para entender porque as pessoas odeiam o personagem. Shinji é um ser humano fraco, falho e cheio de problemas. Dessa forma, ao colocar um personagem assim em uma obra, o seu criador está colocando um pouco de si e também oferece um espelho para que as pessoas consigam ver a sua própria lamentabilidade e defeitos na tela.
“Shinji não me representa!”
Na cultura pop, estamos acostumados com um clichê de herói. É geralmente um homem, destemido, forte, decidido, que vence todos os desafios por um bem comum. Shinji Ikari pega esse clichê e o vira de ponta-cabeça. Ele é representando como um garoto fraco e que não toma decisões, muitas vezes até afeminado. A verdade é que os homens e adolescentes que assistem Evangelion se aproximam muito mais do Shinji do que de um Superman, e isso incomoda. Pode ser que você nem pense nisso enquanto assiste mas, inconscientemente, você se sente representado. Os heróis representam aquilo que poderíamos ser, mas Ikari representa o que somos nos nossos piores dias.
Além de Shinji, existe outro personagem que representa os expectadores em Evangelion. Kensuke é um colega de sala de Shinji que o inveja por pilotar robôs gigantes e morar com duas “gatas”. É um personagem mais fácil de se identificar e muitas vezes concordamos com ele. Em diversos momentos Kensuke demonstra inveja de Shinji por ele ter tudo isso. Mas é bem fácil percebermos no anime que o Kensuke é inocente e está totalmente por fora dos problemas pessoais de Shinji. Ele representa nossa ingenuidade de quando somos mais novos e achamos que a vida se baseia em coisas simples, não olhando as situações como um todo.
Se você odeia o Shinji, você provavelmente odeia a si mesmo.
Ao ficar mais velhos e maduros, começamos a entender Shinji e não nos incomodar com a semelhança com o personagem. É esperado que adultos entendam os problemas psicológicos e o que traumas podem fazer com a personalidade do indivíduo. Ao ver Shinji com os olhos de hoje, sinto pena e entendo sua dor e suas ansiedades. Entendo também que se você odeia o Shinji, você também odeia você mesmo. Pois o personagem faz o papel perfeito de representar as dores, problemas e dúvidas de um adolescente doente com uma responsabilidade enorme.
O final da série Evangelion pode não ter a melhor produção do mundo, mas possui um roteiro e mensagens muito impactantes. Ao unir sua mente à mente de todas as outras pessoas do mundo, Shinji recebe ajuda dos seus conhecidos para poder entender sua dor e resolver seus problemas internos. Aquilo nada mais é do que uma terapia dentro da sua mente que o ajuda a respeitar e conviver com seus problemas e traumas.
A mensagem que deixo aqui no final é que não subestimem o poder da terapia. A mente é um órgão como qualquer outro do corpo e precisa de tratamento quando se está doente. Enfim, não é uma vergonha fazer terapia, isso não quer dizer que você está louco. Só quer dizer que você entende as suas limitações e está procurando ter uma qualidade de vida melhor.
Ps: Um agradecimento especial à minha esposa que me proporciona esses papos viajantes e me ensinou a entender mais sobre mim mesmo.