Repleto de simbolismos, Estou Pensando em Acabar com Tudo é uma experiência surrealista e instigante de Charlie Kaufman.
Entre as mais variadas palavras que podem ser usadas para definir a visão cinematográfica de Charlie Kaufman, ‘simples’ certamente não é uma delas. Seja atuando como roteirista (Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças) ou como diretor (Sinedoque, Nova York, Anomalisa) Kaufman sempre optou por trilhar caminhos ousados, ainda que repletos de uma sensibilidade cativante. Estou Pensando em Acabar com Tudo, novo filme original da Netflix, certamente segue essa cartilha. E mais do que isso, exige que o espectador realmente queira fazer parte da experiência.
Baseada no livro escrito por Iain Reid, a trama acompanha uma jovem (Jessie Buckley, arrasadora) que decide acompanhar seu namorado Jake (Jesse Plemons) em uma viagem para conhecer seus sogros (Toni Colette e David Thewlis). Enquanto questiona o futuro dessa relação, ela começa a perceber que nem tudo é o que parece. É até desonesto resumir tantas nuances nessa pequena sinopse, mas de fato esse é o ponto de partida para que o filme mostre todo o seu arsenal de indagações, análises sobre a vida, construção de personagens e exploração de sentimentos. Tudo perfeitamente calculado e distribuído na tela, como peças que se encaixam para montar um quebra-cabeça abstrato.
Kaufman faz de uma claustrofóbica viagem de carro, sensação reforçada pela proporção 4:3, uma página onde escreve sobre conexão, tema bastante presente em todos os seus trabalhos. Mas também fala sobre expectativas, arrependimentos, medos, esperança, tristeza, solidão. Com tantos elementos, Estou Pensando em Acabar com Tudo vive em constante mudança diante dos nossos olhos. Assim como a protagonista que vira e mexe troca de nome, profissão, roupa e etc. Existe algo profundo acontecendo, que foge até mesmo dos inúmeros pensamentos que a figura central ensaia verbalizar durante todo o longa.
Estou Pensando em Acabar com Tudo também é movido pela força dos diálogos, primordiais para a resolução do mistério que assombra as pouco mais de duas horas do filme. Com pelo menos 70% das cenas ambientadas em um carro, as interações entre a jovem e seu namorado são marcadas por falas carregadas de pensamentos filosóficos e intertextualidade com outros exemplares da cultura pop. Tais passagens ajudam a definir as personalidades dos indivíduos, assim como justificam determinadas ações. Chega a ser inebriante acompanhar as conversas, ainda que alguns diálogos sejam alongados além do necessário.
É preciso destacar também o talento de todo o elenco envolvido. Jessie Buckley e Jesse Plemons não diminuem o ritmo nem por um segundo. Se eles não conseguissem desempenhar as exigências da história, o filme todo cairia por terra. A maneira como ela entrega toda a angústia da personagem é hipnotizante. O mesmo vale para Toni Colette – que vive uma fase incrível na carreira – e David Thewlis. A dupla domina com maestria a ideia por trás de seus papéis, que aqui beiram o surrealismo. Toda a sequência na casa deles é enervante, capaz de causar o mais terrível ataque de pânico.
O surrealismo de Kaufman não funciona apenas por conta de seu talento, mas por uma fusão de outros elementos. Aqui a trilha sonora e a fotografia são a espinha dorsal de suas intenções. Todas as cenas na casa dos pais são dignas de elogio. Assim como a sequência final, talvez uma das mais inspiradas e ousadas desse ano. O momento em que o espectador é convidado a montar o quebra-cabeça com tudo que lhe foi apresentado até ali.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é repleto de simbolismos e significados. Alguns mais claros do que outros. Mas é preciso lembrar que qualquer interpretação de uma obra é válida. Para muitos existe uma mensagem enquanto sobrem os créditos, para outros não passou de uma casca vazia. Em todo o caso, se tal obra consegue despertar algo no espectador, pode-se dizer que seu objetivo foi alcançado. E nesse caso em questão, Charlie Kaufman conseguiu de novo.