O episódio interativo de Black Mirror intitulado Bandersnatch foi lançado ontem e deixou a internet em polvorosa com as possibilidades e discussões, você pode conferir nossa crítica aqui. Algumas questões foram lançadas no twitter e outras redes sociais: Seria esse episódio um filme, um jogo ou uma coisa nova?
Para entender esse episódio precisamos entender o que ele referencia e tenta reproduzir. Na própria história o protagonista tenta transferir um livro-jogo para um jogo de computador. Para quem não conhece, os livros-jogos são livros em que você decide o caminho do personagem. O livro te manda para páginas específicas baseado nas suas escolhas e geralmente essas histórias tem diversos finais diferentes. Até hoje você ainda pode conferir livros desse tipo, alguns dos mais famosos são do game designer Steve Jackson (responsável pelo RPG GURPS) mas aqui no Brasil os mais conhecidos eram os livros do gênero “Enrola e Desenrola” da Ediouro.
Outra inspiração para o episódio que também é jogada na nossa cara são os jogos de RPG de texto para computador dos anos 80. Nesses jogos você controla um personagem em um ambiente cheio de liberdade, seus controles são feitos através de palavras que você digita para interagir com o ambiente. Pela falta de gráficos pode ter certeza que esses jogos eram bem mais livres que qualquer Skyrim ou The Witcher. Um dos mais famosos foi o jogo do Hobbit lançado em 82 e citado no próprio episódio.
Mas esses jogos e livros eram diferentes do episódio da Netflix, neles você tinha mais escolhas, mais liberdade e às vezes até atributos como um jogo de RPG. Por que um desses jogos de computador pode ser considerado um jogo e Bandersnatch seria considerado também? Para isso precisamos entender o que é um jogo e vamos ter que ficar um pouco acadêmicos a partir de agora.
Como todo tema complexo, é difícil encontrar somente uma definição sobre o que é um jogo, então vou colocar aqui o que dizem alguns dos principais estudiosos no assunto:
“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’.”
(Johan Huizinga – Homo Ludens)
Essa é uma definição bem ampla de um dos maiores pesquisadores da área. Vamos analisar o que ele diz e comparar com Bandersnatch. Huizinga diz que o jogo é uma atividade voluntária, isso é muito importante para o quesito da diversão, pois se você faz algo obrigado aquilo não é mais uma diversão, e sim uma obrigação ou trabalho, ao assistir um episódio na Netflix estamos decidindo que queremos aquele tipo de entretenimento naquele momento. Mais a frente ele fala que é uma ação dotada de um fim em si mesmo, ou seja, você não joga para tornar o mundo melhor ou completar algo, você joga pelo simples fato de jogar e isso que o torna interessante. Ele também menciona as regras, no caso do episódio de Black Mirror as regras são que você tem que escolher uma opção entre duas de vez em quando para seguir na história, caso você não responda, eles respondem por você. No final ele fala que o jogo serve para nos levar para outro mundo, isso é questionado em um dos finais do episódio:”Se isso é um entretenimento, não deveria ser mais divertido?”. Gosto muito desse final pois ele questiona essa concepção de diversão que temos, o que é divertido para alguém pode não ser para outra pessoa.
“O jogo é um sistema onde um ou mais jogadores participam de um conflito artificial em busca de um resultado”
(Eric Zimmerman e Katie Salen – Regras do Jogo)
Nessa concepção mais simples vemos que o jogo precisa ter um objetivo, um resultado. Bandersnatch possui alguns objetivos mas ele não fica muito claro para o jogador. O objetivo é chegar no final com vida? É conseguir 5 estrelas no jogo? É ter uma boa relação com seu pai? Isso fica um pouco em aberto e cabe ao jogador decidir, é uma pena que o filme não nos dê muitas opções, com um falso sentimento de escolha. O conflito nesse caso é a própria história, não existe jogo ou filme sem conflito. Só que nos jogos e filmes, o conflito não tem consequências para a gente, por isso que os personagens geralmente estão passando por situações tentas e angustiantes e estamos ali nos divertindo comendo pipoca.
Analisando essas definições podemos perceber que elas se encaixam bem em Bandersnatch. Mas o que separa um filme interativo de um jogo? Um jogo precisa ter gráficos e rodar em uma engine? O grande problema atualmente é que as pessoas estão confundindo o conceito de jogo digital com jogo. Uma amarelinha é tão jogo como um Call of Duty, ambos possuem regras, objetivos e funcionam dentro de um ambiente fechado.
Uma discussão interessante que vi no twitter é se Black Mirror Bandersnatch poderia entrar em premiações de jogos. Eu acredito que não pois existem diversos filmes interativos no youtube e jogos de tabuleiro no mercado e eles não entram nessas premiações. Isso dependeria muito do lobby da Netflix e outros players envolvidos. Acredito que esse episódio não traz muito de novidade para o gênero de vídeos interativos ou jogos de escolha, o seu grande divisor de águas é a plataforma onde está inserido.
Charlie Brooker é um amante dos jogos e conseguiu fazer algo único, traz um jogo para dentro da Netflix, para a TV das pessoas que normalmente não jogam, é claro que já existia o Minecraft da Telltale por lá mas não chega nem perto do alcance dessa série. Eu vi muitas pessoas comentando no twitter, dizendo os caminhos que pegou e suas decepções, pessoas que provavelmente nunca pegaram um jogo desses para jogar. Pois sim, Bandersnatch é um jogo mas é muito mais que isso, ele é um evento que pode ser um divisor de águas no serviço de streaming. Espero que ele inspire mais pessoas a procurar a diversão dentro dos jogos e que também inspire mais produtores de conteúdo a criarem experiências como essa.