Desde Jaws até Sharknado, passando por Megatubarão, vamos tentar entender a febre pelas barbatanas mais representadas no cinema
Tubarões estão presentes em diferentes âmbitos da cultura popular e especialmente no cinema. Este mês eles voltaram a ficar ainda mais em evidência pelos lançamentos de Megatubarão e de Sharknado 6, o último da franquia que estreia hoje (dia 19 de agosto) no canal SyFy. Nos filmes eles já foram representados em diversos tamanhos (Megatubarão, 2018), em combinações inusitadas (Sharktopus, 2010), e se por muitos anos ficaram restritos apenas à água, agora eles já podem ser encontrados na terra (Sand Sharks, 2011), no ar (Sharknado, 2013) e até mesmo no plano espiritual (Ghost Shark, 2013). No entanto, uma coisa todos esses tubarões fictícios têm em comum: são matadores vorazes de humanos.
Mas quando começa essa febre por tubarões no cinema? Por que temos incontáveis filmes de tubarão sendo lançados todos os anos? Os tubarões por si só justificam sua fama de assassinos inescrupulosos? Este dossiê dividido em três partes pretende contextualizar e discutir essas questões.
Horror animal e Jaws
A relação homem-animal é ricamente representada nos mais diversos tipos de arte. É inegável o fascínio que os animais despertam no ser humano, mesmo que muitas vezes esse sentimento esteja acompanhado de temor. Não é por acaso que o gênero cinematográfico de terror tem um segmento chamado “Horror Animal”, que foca na relação não-amistosa entre humanos e animais. Ao longo deste texto será discutido o efeito que Tubarão (Jaws), de 1975, provocou neste subgênero, estigmatizando a figura do tubarão como assassino voraz de humanos.
Tubarão foi o primeiro grande sucesso financeiro de Steven Spielberg e gerou um tremendo impacto no cinema, com uma margem de lucro de mais de 3500% sobre seu baixo orçamento relativo de 7 milhões. O filme se passa numa cidade costeira em uma ilha fictícia no litoral dos EUA. A principal praia desta cidade se torna palco de constantes assassinatos causados por um tubarão-branco, que começa a se alimentar dos turistas. Embora o prefeito queira esconder os fatos da mídia, o xerife local pede ajuda à um ictiólogo e a um pescador veterano para caçar o animal.
No filme, um tubarão-branco se torna um serial-killer, apresentando um comportamento extremamente deturpado em relação ao observado na natureza, no entanto encarado de forma natural dentro da trama. Anteriormente ao lançamento de Tubarão era relativamente incomum um filme do gênero em que o “vilão” fosse apenas um único animal com morfologia próxima à natural e que matasse continuamente, sem motivo aparente. Filmes de primatas assassinos foram abundantes nas décadas de 30 e 40, por exemplo, mas a motivação dos seus ataques era explicitada, geralmente incluindo valores humanos como ciúmes, paixões não correspondidas, vingança etc.
Em geral, filmes de horror animal pré-Jaws representavam animais de morfologia deturpada, boa parte deles apresentando um gigantismo exacerbado proveniente de mutações ou uma inusitada origem pré-histórica. Também eram comuns filmes com animais “normais” em bando atacando a humanidade como o clássico The Birds (1963), e incluindo espécies diversas em alguns casos como Black Zoo (1963) e Frogs (1972). Dos poucos filmes com tubarões assassinos anteriores a Jaws, destacam-se The Sharkfighters (1956), que já explorava a voracidade assassina dos tubarões, mas sem deturpar tanto sua natureza; e Shark! (1969), cujo protagonista divide seu foco entre o perigo dos tubarões e de uma organização criminosa. Esses filmes não ressaltavam o animal como principal antagonista na trama, representando-o geralmente de forma coletiva e apenas como mais uma ameaça ao protagonista. A figura do tubarão como grande vilão ainda não emergia dessas produções.
Jaws muda intensamente a linguagem com que o Horror Animal vinha sendo feito até então. A produção se utilizou de boa parte da linguagem do subgênero slasher, que teve seu primeiro grande sucesso nos EUA um ano antes da estreia de Tubarão (O Massacre da Serra Elétrica, 1974), e apenas substituiu o assassino mascarado por um animal selvagem. A máscara que desumaniza o assassino slasher, tornando-o imprevisível e inconsequente, é substituída pela máscara de desconhecimento que comumente se tem sobre boa parte dos animais selvagens como o tubarão-branco, somado à noção de imprevisibilidade remetida a qualquer animal. Além dos múltiplos assassinatos em sequência, a apropriação da linguagem e estética slasher pode ser notada pela presença da câmera em primeira pessoa representando a visão do assassino, a música tema que acompanha o antagonista, e a revelação do assassino aos poucos, até mostrá-lo por inteiro apenas nos minutos finais. A intenção de vilanizar o tubarão ao extremo, tornando-o mais tarde um vilão icônico do horror ao lado de seu predecessor Leatherface e de muitos outros que viriam a seguir, fica nítida na narração do trailer do filme citada abaixo:
“Há uma criatura que sobreviveu por milhões de anos de evolução sem mudanças, sem compaixão e sem lógica. Vive para matar. Uma máquina irracional de comer. Ataca e devora qualquer coisa. É como se Deus tivesse criado o demônio e lhe dado presas.”
Esta fórmula, de baixo orçamento relativo e que gerava altos lucros, foi incansavelmente explorada após o lançamento de Jaws, não só com tubarões como o vilão principal, mas sobretudo com eles. O estigma de tubarão assassino foi se estabelecendo cada vez mais e reverberou em diferentes partes do mundo, gerando diversos rip-offs como o “Jaws” italiano L’ultimo Squalo (1981), o turco Çöl (1983), o indiano Aatank (1996) e até mesmo a ilustre pornochanchada brasileira Bacalhau (1976), que não perdeu tempo e estreou um ano depois de sua inspiração. Além disso, Jaws gerou três sequências, sendo que Tubarão 4: A vingança deixa claro os motivos “pessoais” para o ataque do animal em questão. Diversas motivações para o ataque dos tubarões foram exploradas, mesmo que não fosse necessário para a narrativa, já que as palavras “tubarão” e “assassino” já eram automaticamente associadas pelo público em geral. Muitos desses filmes, como já era tendência no Horror Animal e nos filmes de baixo orçamento em geral, apelaram cada vez mais para a exposição sexual, com mulheres seminuas presentes na grande maioria dos seus pôsteres, tentando compensar o roteiro genérico com o apelo à violência e erotismo para atrair o público.
O próximo capítulo deste dossiê (parte II) irá explorar como o comportamento natural dos tubarões foi deturpado no cinema, fazendo um comparativo com dados sobre espécies reais que são apresentadas nos filmes, principalmente o famigerado tubarão-branco, o grande antagonista de Jaws. A parte III irá focar nos filmes pós-Jaws, até chegarmos no fenômeno Sharknado.
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