Dom é uma série brasileira do Amazon Prime Video inspirada na história do bandido ‘playboy, gato, loirinho de olho azul’ que ganhou as manchetes dos jornais do Rio de Janeiro e do Brasil nos anos 2000, por usar sua “boa aparência” e o preconceito estrutural para assaltar propriedades de luxo. Talvez, o espectador dos anos 2000 ficasse impressionado com a qualidade técnica da produção nacional e deixasse passar batido a reprodução de misoginia e racismo em certas cenas, em algumas mais sutis que em outras. Mas ficou difícil para a espectadora dos anos 2020 ignorar.
Antes que digam que me importo mais em problematizar do que fazer uma crítica consciente, quero adiantar que sei que não é possível manter o discurso “politicamente correto” quando a história envolve tráfico de drogas e dependência química. Mas existem produções que abordam questões problemáticas como estas, que manifestavam a visão anacrônica da sociedade no período em que se passam, mas permanecem cientes de que se direcionam a pessoas com uma mentalidade diferente. Não é fácil, as regras não são nítidas, mas dá para notar quando não funciona, como ocorre em Dom. A produção deixa claro que a história é somente inspirada em fatos reais. Muitos deles são apenas ficção e poderiam ser abordados de uma maneira diferente.
A trama se desenvolve a partir da vida de dois personagens, em duas linhas do tempo diferentes: Vitor Dantas (Felipe Bragança), desde sua entrada na Polícia Civil nos anos 70, para combater a entrada da cocaína no Brasil; e Pedro Dom (Gabriel Leoni), seu filho, que fica dependente da mesma droga, destrói sua estrutura familiar de classe média e se tornar o famoso Dom, o bandido gato. A premissa parece interessante e, em alguns pontos, ficamos realmente interessados em saber o que acontecerá em seguida. Mas os dois protagonizam seus núcleos como se fossem (anti) heróis e os únicos personagens pensantes, principalmente quando os secundários são mulheres e pessoas negras.
Na fase adulta, Vitor (Flávio Tolzani) é um galã à moda antiga: charmoso, emocionalmente inacessível e concentrado em seu único objetivo de manter o filho sóbrio. Ele deixou a carreira de policial, mas ainda age como um e é capaz de quase tudo, ainda mais quando Pedro está envolvido. Para ter notícias dele, aproxima-se de Jessika (Ingrid Conte), uma streaper que frequenta o mesmo Morro onde Dom vai. Óbvio que a direção não perderia a oportunidade de explorar o corpo dela sem necessidade nenhuma para a narrativa. Óbvio também que ela aceita fazer de tudo para passar mais tempo com o sedutor protagonista, inclusive colher provas dentro da casa de um bandido. Sua beleza e sensualidade conseguiram atrair o criminoso, mas ela não teve inteligência suficiente para fechar a porta na hora que tirava as fotos, coisa que jamais escaparia ao raciocínio de Vitor.
O mesmo acontece com o núcleo de Gabriel Leoni. Até uma figurante que nem tem nome serve somente para distrair um segurança com sexo, enquanto o Bonde, o nome do grupo que Dom lidera, executa seus assaltos. Viviane (Isabela Sartoni), aparentemente, foi criada somente com este propósito, pois na maior parte do tempo serve para tirar a calcinha, para deixar a barra limpa ou simplesmente porque sim. Quem já leu Feliz Ano Novo sabe que, de fato, os dependentes químicos e criminosos são capazes de condutas que abalam fortemente quem não está à margem da sociedade. Mas as ações da personagem de Sartoni provocam um grande incômodo, e lembrar do conto de Rubem Fonseca faz perceber como poderiam ser bem escritas, se a autoria fosse de uma pessoa que domina o gênero.
O Bonde já existia antes de Dom, mas, depois que ele passa a integrar a equipe, seus membros não conseguem mais fazer nada direito. Lico (Ramon Francisco), seu “irmão” negro, fica insuportavelmente inapto a botar os golpes em prática e acaba morrendo de overdose. As tentativas de explorar essa suposta relação fraterna ficam tão caricatas quanto a ligação de Pedro com o pai. Assim, não dá para comprar os dramas que elas provocam, nem estabelecer uma conexão emocional.
Um exemplo ocorre na primeira sequência, quando Vitor invade o baile funk em busca do filho, não antes de sofrer ameaças de policiais que cercavam o local. Um dos PMs lhe pergunta “você não tem medo de morrer?”, e ele responde com um clichê “você tem filho?”, somos lançados para fora da história. Algo semelhante acontece mais tarde, quando o pai leva uma revista Playboy para a clínica de reabilitação onde Pedro está internado, para representar uma atitude engraçada e afetiva. Pelo menos para mim, não funcionou, e penso que o problema pode ser tanto o roteiro como a fraca atuação de Tolezani.
Outro caso que chama atenção é o de Ribeiro (Fábio Lago), que escolhe o jovem Vitor para ensinar como os traficantes lucram com a cocaína mas, ao mesmo tempo, dão mais suporte aos moradores de sua comunidade do que o governo. Porém, os diálogos são tão pedagógicos que chegam a ser irritantes. Lago está incrível e tenta tirar leite de pedra, só que o texto e a direção complicam seu êxito.
Como um todo, a narrativa toca em assuntos complexos batendo apenas na superfície, talvez por querer abarcar muitos elementos sem desenvolvê-los bem. Fica forte a impressão de que os conflitos que a série traz à tona são escritos por pessoas de fora, que não os vivenciaram de verdade. Nesse sentido, até Cidade de Deus, com todos os problemas que hoje sabemos sobre sua realização, parece mais atual. Se a escolha fosse a de se manter mais fiel à história real – um traficante que entrou nesse mundo por opção e se orgulhava de ser um bandido famoso -, poderiam passar mais autenticidade do que a que trata do menino loirinho, vítima das drogas e da corrupção policial. Essa versão convenceu tanto quanto as lentes azuis de Leone que, apesar de ser evidente sua entrega para o papel, não conseguiu salvá-la. O esforço por fazer de Dom um anti-herói carismático deixa a história repetitiva, cansativa e, por vezes, sem sentido.
É frustrante desestimular o público a assistir produções nacionais, mas muitos elementos de Dom me incomodaram e eu não poderia deixar de dizer aqui. Mas, para não encerrar falando mal, a atmosfera carioca do início do novo milênio é muito bem recomposta, tanto pelos cenários como pelas músicas (quer dizer, às vezes peca nessa parte também). Enfim, conseguem cutucar alguém que, como eu, anda com saudades dos anos 2000.