Todo dia 8 de março é comemorado o infame Dia da Mulher, em que, faz algum tempo, há muita polêmica acerca desse dia. Alguns dizem que não existe o dia do homem, logo, não faz sentido; outras reclamam que queremos é respeito, e podem enfiar as flores no **; há muitos posts comentando sobre o que sofremos diariamente e porque esse dia é tão irrelevante para nós. No fim, há todo tipo de coisa no dia 8 de março.
Afinal, é errado comemorarmos as mulheres por serem fortes e aguentarem abusos, jornadas triplas ou quádruplas de trabalho, por se sentirem obrigadas a abraçarem um padrão estético que as destrói de dentro para fora, pela pressão social em casarmos e termos filhos, chegar aos 30 e sermos consideradas velhas demais para sermos qualquer coisa além de tia velha e darem graças a Deus caso você consiga casar?
Vamos por partes.
Antes de tudo, estarei me baseando na visão eurocêntrica até chegar ao Brasil – já que a parte “ocidental” não teve influência no nosso país. Teoricamente.
Comecemos no que as pessoas acham que seja o berço da história: a Grécia Antiga.
Desde cedo, na Grécia, as mulheres eram separadas, vivendo isoladamente, praticamente trancafiadas. Após o casamento, a esposa só existia para reprodução e manutenção do lar, até mesmo o cuidado com a prole tinha seus poréns, pois a partir de certa idade, o filho ficaria sob os comandos do homem mais próximo – como um tio, por exemplo, para aprender a se tornar homem. Se fosse uma filha, bem, sabemos que fim as mulheres tomavam nessa sociedade: eram exclusivamente mães ou prostitutas ou cortesãs. O amor e o sexo por prazer eram exclusivos dos homens. E sim, estou falando de uma sociedade em que era normal homens se amarem.
Em seu livro Política, Aristóteles já citava as palavras de Sófocles de que “as mulheres deviam, por sua graça
natural, permanecer em silêncio, o que é por demais significativo de sua condição numa comunidade democrática (…)“. Jean Pierre Vernant observa mesmo que o que implicava o sistema da pólis era o poder da Dialética, ou o poder da palavra. “Palavra que não era mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação” (Vernant, 1989:34). Se a palavra era o que moderava o sistema social e a mulher deveria calar-se e ser completamente submissa, ela era completamente excluída de exercer a sua cidadania – e sabemos que isso é o mesmo que não ser considerado um ser humano dentro de uma sociedade.
Você pode citar a sociedade espartana como argumentação, claro. De certo modo, as espartanas eram consideradas mais “livres”, podendo participar de jogos e até mesmo sabendo se defender, mas, para isso, eram privadas da própria família. O Estado criava os filhos e os maridos pouco se importavam em visitar suas esposas. “Em resumo, o que se objetivava era fortalecer a comunidade de guerreiros em detrimento da esfera privada – foi a implantação na sua forma radical do ideal hoplítico” (Alvito, 1988: 43-44). Além disso, mesmo que elas fossem consideradas mais “livres”, ainda eram parte e propriedade de seu pai, avô, enfim, um homem que fosse o seu tutor legal, sendo ele a pessoa a escolher com quem ela casaria e tomava todas as decisões sobre sua vida. Aí ela casava e virava propriedade do marido. Vantagens? Nem tanto.
Inclusive, essa ideia sofisticada de união que associa amor, sexualidade e casamento é uma invenção da era burguesa. O casamento era um negócio de família, um contrato que dois indivíduos faziam não para o prazer, mas a conselho de suas famílias e para o bem delas. O principal papel do casamento era servir de base a alianças cuja importância se sobrepunha ao amor e à sexualidade. Hoje em dia se escuta muita piada sobre gente casada não fazer sexo, imagina nessa época em que ele era feito apenas para fins de reprodução. Transar com o marido era obrigação da esposa e ter o seu primogênito, seu varão era o seu maior objetivo. E isso porque a ideia do casamento religioso não existiu até o século V! “A cerimônia, na casa da futura esposa, reunia parentes dos noivos e testemunhas. Trocavam-se palavras e bens. O pai da moça transferia a tutela de sua filha para o marido e este retribuía a doação com a entrega de uma donatio puellae (garantia do contrato). Sendo a mulher parte do patrimônio familiar, sua entrega a um homem selava a união de duas famílias reais ou nobres.” (Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações, Maria de Fátima Araújo)
Nesse exato momento, quero recapitular com vocês o casamento atual e ver se soa familiar. O noivo espera no altar o pai da noiva entregá-la para ele, eles assinam um documento. E, quando o pastor ou padre vai declarar que estão casados, o mais comum é a frase “Eu os declaro marido e (SOEM OS TAMBORES) mulher.” E aqui vai a pergunta de ouro: por que marido e mulher e não marido e esposa? Deixo suas consciências responderem.
Malleus Maleficarum – 1484
Durante muito tempo, a ideia de Deus não existia. As divindades eram diversas: havia o culto à Mãe Terra dos Astecas; na China, o feminino e o masculino reinavam juntos; no mito grego tínhamos Gaia, a Mãe Terra e por aí seguiam-se várias divindades andróginas, femininas ou em par com o masculino. Mas, a partir do segundo milênio a.C é que os registros começam a mudar. Javé é deus único e todo-poderoso, criando o mundo em 7 dias e, no fim, criando o seu ápice: o homem. A partir dele (reza a lenda que da sua costela), ele criou a mulher, que, no futuro, seria o problema. Mulheres são naturalmente sedutoras, logo, ela leva o homem ao erro: comer o fruto proibido.
“Uma vez adquirido o conhecimento, o homem tem que sofrer. O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza a mulher. (…) O desejando dominante agora é do homem. O desejo da mulher será para sempre carência, e é esta paixão que será o seu castigo. Daí em diante, ela será definida por sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.“ (Breve Introdução Histórica, Rose Marie Muraro). Isso soa familiar para você?
A partir do século V, houve a expansão da Igreja, que, até então, não tinha tanta relevância. É quando ela estende seus braços para abarcar não somente o povo, como a aristocracia também. Isso só viria a ter uma certa mudança com a ascensão da burguesia, após o período feudal, mas estou me adiantando. Com esse avanço teológico, havia uma necessidade de convencer a mulher de sua inferioridade. Como já dito, na própria Bíblia, logo no início, temos Deus – lido como masculino, que cria a figura feminina a partir do homem. Simbolicamente, é como se o homem “desse à luz” à mulher. Agora, parir não está mais ligado ao sagrado, e sim à vulnerabilidade. A mulher passa a se ver pelos olhos do masculino: ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer. E o sexo, para quem conhece a índole cristã, é pecado.
Lá para a Alta Idade Média (século V ao XI) é que a condição de algumas mulheres florescem, por assim dizer. Mudou para as de classe alta, aristocrática, que passaram a ter acesso às artes, às ciências, à literatura – práticas sempre negadas ao gênero feminino. Podemos encontrar mulheres que, durantes os séculos quebraram esses padrões e conseguiram se sobressair até mesmo aos homens, mas, para variar, a história as apaga e conhecemos apenas os feitos masculinos. E, logo depois dessa época, temos a Baixa Idade Média e o início da caça às bruxas, um dos períodos em que as mulheres mais foram assassinadas a troco de NADA. Muitos(as) escritores(as) estimam que o número total de mulheres executadas pendia na casa dos milhões e eram 85% das pessoas acusadas e cruelmente mortas por “serem” bruxas.
Com o fim do feudalismo e a ascenção da burguesia, as mulheres passaram a ter mais liberdade, trabalhando fora de casa como parteiras, curandeiras etc. E, como sabemos, mulher solta é mulher perigosa! O novo poder precisava dominar às massas, e o “expurgo”, ou a caça às bruxas, serviu como uma forma de se controlar o povo, para forjar uma população dócil e alienada, que não se rebelaria mais, já que, até então, ela entrava em conflito com as autoridades por serem expostos à fome, à peste e à guerra. Até ali, as morais do Cristianismo ainda não estavam bem alicerçadas, ainda existindo grupos “pagãos”.
Ao contrário do que se pensa, a Inquisição não foi algo feito aleatoriamente sob crenças simplesmente infundadas. Foi um ato pensado e calculado pelas classes dominantes, o que obviamente envolvia a Igreja, para conseguir mais poder. Nesse mundo teocrático, a transgressão da fé também era política, e pior, a sexual era uma transgressão à fé. E quem, me respondam, é o grupo de pessoas culpadas pelos atos libidinosos? Isso mesmo. As mulheres. E assim nasceu o livro Malleus Maleficarum, que ditava o que era ser uma bruxa e como identificá-la. Satã, obviamente, era o senhor do prazer, logo, toda mulher obrigatoriamente haveria de ter transado com ele como forma de firmar seu pacto e se transformar em bruxa. E as bruxas não estavam de brincadeira! Eram responsáveis pelo homem broxar, pelo homem não conseguir não desejá-la, praticar abortos, oferecer crianças a Satanás… Todo o tipo de coisa maligna que somente elas poderiam cometer. De acordo com o livro, tais crimes eram hediondos e imperdoáveis, e as bruxas só poderiam ter suas almas lavadas por meio da tortura e da morte. Normalmente, queimadas vivas. O Malleus Maleficarum foi, durantes 3 séculos, a Bíblia dos inquisidores.
Então chegamos ao século XVIII. Aqui, a mulher é frígida, fria. Orgasmos são coisas demoníacas. Ter ambições também. O acesso ao estudo é novamente retirado delas. A sociedade é composta por trabalhores dóceis que não questionam o sistema. A Inquisição cumpriu seu papel: puniu as mulheres e moldou a sociedade.
Você acha que acaba aqui? Aguarde, pois teremos uma parte 2!