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Departamento de Conspirações – Parte 1

E se um entregador de pizza ficasse congelado num refrigerador e fosse despertado mil anos depois? E se um cientista maluco levasse o seu neto em aventuras pelos multiuniversos? E se as teorias das conspirações fossem todas verdades, mantidas em segredo por uma empresa contratada pelos Illuminati? Bem, essa última é a premissa da nova série original da Netflix Departamento de Conspirações, que é mais uma dessas sitcoms que cabem muito bem no formato animação para adultos. Porque, além de ser mais prático e barato representar os reptilianos, as pedras falantes da ilha de Páscoa e pousos na Lua em animação, esse tipo de programa, com sua ironia e referências pop em um contexto fantástico, podem atrair muito fácil a simpatia dos fãs de desenhos como Futurama, Rick and Morty e Bojack Horseman.

No decorrer dos episódios, acompanhamos o trabalho de Reagan Ridley (Lizzy Caplan) na empresa Cognito, Inc., que muitas vezes consiste em resolver e esconder do mundo problemas que ela mesma causou. Embora seja bastante competente, sua falta de carisma faz com que tenha dificuldades em convencer os colegas de trabalho a colaborar. Por isso, seu superior contrata também Brett Hand (Clark Duke) que conquista a simpatia de todos por ser um belo homem cis, hétero e branco que, como ele mesmo descreve, tão genérico que nenhum satélite consegue identificar.

Assim, eles acabam formando uma dupla, que lembram bastante Dana Scully (Gillian Anderson) e Fox Mulder (David Duchovny) de Arquivo X, só que com o propósito invertido. Enquanto o casal que fez sucesso nos anos 1990 — cujas idas e vindas do suposto romance foram responsáveis pela popularização do termo ship, usado quando torcemos para casais — embarcava em aventuras para descobrir e provar que as conspirações ocultas pelo governo estadunidense realmente existiam, Reagan e Brett trabalham para que os complôs aconteçam, sem que a população saiba. 

Outro aspecto que lembra Arquivo X, mas que ocorre de forma espelhada, é o protagonismo feminino, já que Brett serve muito mais de apoio para a aventura de Reagan do que o contrário. No live action, era Scully quem tinha que abrir mão da vida pessoal para correr atrás de salvar Mulder, um galã visionário com ar distante. Nessa animação, as questões de Ridley estão no centro do enredo e, ao contrário do que ocorria com a personagem de Gillian, a protagonista de Departamento de Conspirações até mesmo tem uma vida sexual. E o mais legal é que essa parte da vida de Reagan também é explorada como uma deixa para satirizar esses heróis como Mulder, no episódio em que ela se envolve com um charmoso espião secreto. 

Como já ouvi dizer por aí, de fato, Departamento de Conspirações, criada por Shion Takeuchi, que já havia trabalhado em Gravity Falls e Apenas um Show, não é uma série tão inovadora assim. Ela segue a linha do que já foi desbravado por outras animações para o público adulto, mas, na minha opinião, faz bem aquilo a que se propõe: tem um enredo envolvente e é bastante divertida. Além disso, é muito fácil assistir aos 10 episódios de uma vez, assim como se identificar com Reagan que, excluindo o detalhe de ser uma cientista à serviço do governo das sombras, é só mais uma millennial workaholic que tenta equilibrar questões pessoais e profissionais.

Em uma entrevista, Takeuchi contou como a ideia surgiu:

Desde a faculdade sou interessada nas teorias das conspirações. Lembro que ouvia um programa  que começava tarde da noite, em que o locutor conversava com pessoas do tal governo das sombras. Esses personagens eram apresentados como indivíduos hiper misteriosos, incrivelmente competentes, manipulando eventos globais para além da nossa compreensão, de uma forma que até dava medo. Anos depois, pensar nessa ideia acabou se tornando algo engraçado, porque, se houvesse um governo das sombras, haveria pessoas para dirigi-lo. E, pelo que sei das pessoas, provavelmente essa organização secreta e sombria seria tão caótica e estressante como qualquer trabalho, o que poderia dar uma ótima comédia de escritório.” (Tradução Livre).

Essa boa sacada de Shion foi bem desenvolvida e se tornou em uma série com várias tiradas engraçadas. E é ótimo ver que, mesmo nesse contexto maluco, houve espaço para reafirmar o quanto crenças como o terraplanismo são ridículas e absurdas. Na série, a Terra é sim muito redonda (e oca, cheia de monstros marinhos no interior). Ah, e todas as fotos que a Nasa divulga são verdadeiras (ela só usa um pouco do Photoshop para esconder Atlântida).

O humor ácido não se arrisca no ataque à cultura estadunidense tanto quanto Rick and Morty, que consegue achar graça até no 11 de setembro. Departamento de Conspirações não cutuca o patriotismo dos EUA tanto assim, mas, pelo menos, é mais leve. O melhor de tudo é que a experiência de assistir é mais confortável, por conta da forma com que trata as personagens do gênero feminino, deixando nítida a importância de haver mais séries idealizadas por nós em um meio dominado por homens.