Resisti o máximo que pude para não usar esse trocadilho, mas ao final dessa quarta temporada, é impossível não afirmar que The Crown é uma das grandes joias da coroa da Netflix. Quem sabe, a maior delas. O talento absurdo de Peter Morgan faz parecer fácil manter um nível tão elevado de qualidade durante tanto tempo. E mais do que isso, seu mergulho histórico-ficcional pelos bastidores da Família Real Britânica torna-se cada vez mais interessante. O que realmente impressiona é justamente a troca do elenco principal a cada duas temporadas, com novos rostos elevando o nível de atuação e guiando os rumos da atração como se estivessem presentes desde o primeiro episódio.
Os roteiros dos episódios consertam aquele que foi o maior deslize do terceiro ano: tirar o foco dos núcleos e o colocar em indivíduos separados. Dessa forma, o passeio por décadas do reinado de Elizabeth II torna-se algo natural e nada enfadonho. Justamente por conseguirmos presenciar os desdobramentos dos acontecimentos em cada um dos níveis hierárquicos da série. E The Crown sabe como trabalhar seus personagens, especialmente aqueles mais complexos. Humanizar pessoas tão distantes do público, e que ainda sim geram um enorme fascínio durante tanto tempo, é a chave para o sucesso.
É enervante o quanto a temporada mostra o lado frio e cruel da Família Real, como um redemoinho que suga e destrói aqueles que não estiverem preparados. Muito do tom da história é pautado nesse aspecto, o que pode incomodar quem ainda não conseguiu captar a intenção da série. The Crown não tem a pretensão de apresentar um estudo real e detalhado, mas de usar liberdades criativas para construir uma drama extremamente eficiente. Apontar incongruências históricas como algum tipo de demérito não é algo justo.
Se este novo ano pudesse ser resumido em três personagens, seriam Margaret Thatcher (Gillian Anderson), Princesa Diana (Emma Corrin) e Príncipe Charles (Josh O’Connor). O que não chega a ser uma surpresa, tendo em vista o foco que receberam nos materiais de divulgação. Mas a atuação da trinca é impressionante, digna de todos os elogios. O trabalho de caracterização de Anderson para viver a Dama de Ferro beira a perfeição. Além de cabelo, maquiagem e figurino, ela usa do tom de voz e trejeitos físicos para desaparecer na personagem. Suas interações com Elizabeth (Olivia Colman) são marcantes, fazendo de cada encontro entre a Primeira-Ministra e a Rainha os momentos mais esperados dos episódios.
Emma Corrin é uma poderosa estrela em ascensão. O que ela faz com sua versão de Lady Di vai muito além da questão física. Seu amadurecimento, passando de uma jovem apaixonada e sonhadora para uma mulher destruída por todos que a cercam é comovente e bastante crível. Justamente porque as manifestações dessa queda estão presentes no seu tom de voz, na postura e nas cenas onde sua bulimia é retratada. É interessante a dualidade empregada pelos roteiros, fazendo da Princesa praticamente uma divindade banhada de amor e compaixão diante do público para logo em seguida mostrar sua fragilidade distante dos holofotes. Os momentos em que seus gritos de desespero são abafados pela trilha sonora resumem bastante de sua jornada.
Josh O’Connor, o único que está presente desde a última temporada, encontra seu merecido espaço para brilhar. O Príncipe Charles está constantemente triste, irritado, desesperado, curvado ao ponto de beirar a submissão. Com a inflexão de voz e o olhar hesitante, O’Connor imprime o desespero que o personagem vive diante da pressão familiar e social que precisa enfrentar, vivendo um casamento sem amor em nome das tradições. Por falar no matrimônio, The Crown o trata da maneira mais justa possível, evitando demonizar apenas um dos lados. Ambos são humanos e consequentemente falhos. Obviamente, Lady Di pagou o pior preço dessa mentira. Mas é significativo perceber o quanto o casal foi destroçado pelo triturador da Coroa.
É preciso tirar um parágrafo para os trabalhos de Olivia Colman e Tobias Menzies, igualmente hipnotizantes em tela. A parceria, compreensão e apoio, mesmo que de forma pouco usual, coroam o trabalho iniciado anos atrás por Claire Foy e Matt Smith. A noção dos sacrifícios feitos por ambos ao longo dos anos é o que explica a forma que tratam o casamento entre Charles e Diana. Colman, por sinal, parece mais confortável no papel. Seu talento absurdo fica evidente em seus gestos contidos e nas falas mais ríspidas quando necessário. Sua versão de Elizabeth é mais humanizada, transparecendo os sentimentos além do dever.
Os principais deslizes consistem na pouca profundidade dada à questão política e social durante o governo de Thatcher. Peter Morgan mantém a postura de transmitir esses elementos através da visão da realeza, mas caberia uma quebra de perspectiva maior aqui. O pouco espaço dado para Helena Bonham Carter também é sentido, mesmo entendendo a intenção da temporada.
Muito se especulou que os significativos cancelamentos de produções pela Netflix tenha sido uma forma de garantir orçamento para a nova temporada. Verdade ou não, o ponto é que The Crown merece todo o destaque possível. Com mais duas temporadas pela frente, e uma nova leva de atores, é impossível não ficar empolgado com o futuro. Vida longa à Rainha.