Coringa é uma obra de grande poder e contém uma atuação absurda de Joaquin Phoenix, mas precisamos estar atentos no perigo de sua mensagem
Estreia esta semana nos cinemas a mais nova produção baseada em um personagem das HQs, Coringa, dirigido por Todd Phillips, e estrelado por Joaquim Phoenix no papel do palhaço maníaco de Gotham.
Antes de qualquer coisa, não posso nunca chegar aqui e dizer que o filme seja desagradável ou mal dirigido, porque seria mentira. O filme é cinema em sua mais poderosa essência. É de encher os olhos como ele é bem dirigido, tem uma fotografia absurdamente fabulosa e que casa demais com toda a narrativa proposta, transformando Gotham em uma Nova York de Taxi Driver, só que mil vezes mais perigosa.
Tudo funciona e os cortes brutos de montagem vão fazendo parte completa da construção de como Phillips deseja contar a sua versão para o palhaço. A atuação de Phoenix é poderosa, incômoda e alucinante quando assim exigida. A criação de Arthur, até se encontrar na roupa – como quem sai de um casulo de forma artística -, é muito bem construída, mas sua mensagem é perigosa. Principalmente nos dias em que vivemos.
A partir deste momento, teremos spoilers. Se ainda não viram o filme, então vão assistir e depois voltem para ler. Esta discussão é necessária e você, é óbvio, pode discordar do que vi no cinema
01 – Tudo o que acontece na vida do Coringa o levou a ser quem ele é
A sociedade de Gotham se mostra bem decadente, é a primeira vez que consigo sentir, seja em cinema, séries ou quadrinhos, o quanto é perigoso e problemático viver nesse local. Ela nos causa receio o tempo todo e, em seu ápice, temos medo da cidade. Ela é verdadeiramente perigosa.
A sua população tornou-se fria, e o poder dos mais favorecidos nos mostra a falta de empatia com o próximo. A elite se distanciou de todos os problemas humanos, e criou as mazelas sociais vista na película. E tudo isso é usado de muleta para legitimar as atitudes de Arthur.
Ele não é amado, não tem um bom emprego, é abandonado por quem deveria (segundo ele) lhe ajudar. Ele é invisível, e acredito que seja perigoso usar essa ferramenta, pois podemos tornar legitimo posturas violentas. Em nossa sociedade, o discurso violento carrega essa autorização. E toda essa ação, trouxe diversos problemas para uma sociedade já caótica por natureza.
Lógico, o filme mostra a visão do Coringa, mas mesmo assim, me senti preocupado.
02 – Os atos violentos são em cima de pessoas que o trataram com “crueldade”
Sua primeira grande ação violenta é voltada para três pessoas dentro de uma linha do metrô. Três executivos babacas que perturbam uma mulher dentro do vagão acabam jogando sua ira contra Arthur que acaba revidando, por impulso, e atirando nos três. É um ato de vingança.
Quando Arthur descobre que toda a sua relação amorosa com Sophie (Zazie Beetz) é algo de seu imaginário, isso o coloca em um momento estranho, onde, provavelmente, ele acaba com a pessoa em que via algo para um relacionamento. E, nesse momento, não sabemos. Esse seria o momento para mostrar que ele é uma ameaça e não deve ser idolatrado, ele é o vilão. Mas não temos isso.
03 – Ele foi adotado e sofreu maus tratos, por isso, isso justifica tudo?
O momento em que o personagem liga a chave e se liberta de vez, é quando ele descobre que sua mãe (Frances Conroy) o adotou, e permitiu que ele ainda pequeno sofresse maus tratos. Nesse momento, a mulher, que no início do filme se mostra frágil mas com uma ligação amorosa com ele, não importa mais.
Ele elimina esse problema de sua vida e se torna aquilo o que ele deveria ser: o palhaço do crime. E a cena nem é visceral, ela é suavizada. É mais uma vez mostrando que seus atos são legitimados pela forma como os outros o trataram.
04 – Ninguém o trata bem?
Se tirarmos sua mãe, ninguém demonstra carinho por Arthur, mas isso é esquecido pelo personagem. Todos são agressivos, violentos, fazem dele um saco de pancada e piada. E o conceito de “Um dia ruim”, construído por Alan Moore em A Piada Mortal, é jogado aqui. Mas não percebi o sentido ou peso disso na trama, porque todos os dias dele são ruins. E aqui, você pode ter uma conexão com ele, e mesmo que não justifique… você entende.
E esse discurso é problemático.
05 – Um único ato de bondade, mas…
Então, mais um vez, ele usa a violência em cima de alguém que foi sacana com ele, um de seus amigos no escritório de palhaço, que por conta desse cara, ele é demitido do único lugar que ele sentia prazer em trabalhar. Ao matar o personagem, ele olha para um outro, o anão, e deixa-o ir, beijando, de forma fraternal, com um beijo na testa. Pois esse colega de trabalho foi o único que o tratou bem.
07 – Thomas Wayne é um escroto
Mais uma vez, essa é a visão do personagem, e estamos vendo tudo pela ótica do Coringa, mas ninguém é bom no filme, todos são escrotos com ele e o desvalorizam. E Thomas Wayne (Brett Cullen) é colocado como alguém bem demagogo, que não mostra estar se importando de verdade com toda a situação da cidade. Até parece ser um pai bem ausente, já que o pequeno Bruce (Dante Pereira-Olson) é mostrando como uma criança sozinha e, possivelmente, infeliz.
Os atos do personagem de Phoenix despertam uma aura de ódio da sociedade contra os mais ricos. E acabamos vendo o fatídico dia no beco do crime, em que não presenciamos um Joe Chill que queria roubar os Waynes, mas um crime que é realizado pelo ódio. Mais uma vez, ações violentas legitimadas por discursos de violentos.
08 – Nem o “De Niro” o trata bem, e por isso merece…
O filme traz várias homenagens a Martin Scorsese, além de uma Gotham que lembra muito Taxi Driver e sua Nova Iorque, outro filme é lembrado aqui, O Rei da Comédia. O personagem de Robert De Niro, Murray Franklin, é um comediante e apresentador de talk show, e acaba expondo e ridicularizando Arthur com o seu stand up comedy. O que acaba levando o personagem de Arthur para o palco de Franklin.
Bom, o desfecho não foi muito feliz para Murray. É nesse momento que Coringa entra de vez em sua persona, e se entende como esse cara que vive à margem da sociedade. Ninguém o ama ou se importa com ele, ele poderia morrer na rua, e ninguém olharia por ele. Então, se é dessa forma, todos merecem a sua vingança… preciso dizer mais alguma coisa?
09 – De Arthur à Coringa: a transformação e o perigo
Um dos pontos mais preocupantes é o seu final. Ele poderia ter encerrado na cena com Murray. O simbolismo por trás de uma horda de palhaços em busca de um expurgo social e vingativo em meio às ruas de Gotham é intrigante. Arthur, agora como Coringa, é carregado e colocado em cima do capô de carro, com os braços abertos. O messias dessas pessoas, que lentamente levanta-se para esse novo alvorecer. E começa a sua dança como quem invoca essa divindade para caminhar e dançar perante os mortais. Você não endeusa o mal, você combate, e nesse momento, ele venceu. O filme é dele, do vilão, mas os signos visuais impostos colocam um patamar perigoso e de fácil desvirtuação.
Não estou aqui para criticar a qualidade do filme, como disse, é uma obra cinematográfica absurda. É um filme que merece ser visto de verdade, pois a atuação de Phoenix é digna de todos os prêmios, mas me preocupa como as massas irão assimilar essas ideias.
É um filme de vilão, mas seu atos são legitimados o tempo todo. E sabemos como isso pode ser perigoso, pois infelizmente estamos vivendo em uma sociedade que legitima o ódio.
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