Conan, por Frank Frazetta Conan, por Frank Frazetta

Conan: como um autor racista e misógino pode estragar uma boa experiência

Ao ler o primeiro volume das aventuras de Conan, o Bárbado do autor Robert E. Howard, publicado pela Pipoca & Nanquim em uma edição para lá de linda, tive que me deparar com muitas e muitas cenas desagradáveis de racismo, misoginia, masculinidade tóxica e é daí pra baixo. Na introdução do livro, tenta-se justificar e tornar aceitável esse tipo de narrativa, pois o seu criador foi “importante” para a literatura, o racismo não é perceptível, as mulheres da época (me pergunto que época é essa em um livro de fantasia) eram assim mesmo, além de que Howard era um homem branco, texano, cis, hétero (até onde se sabe), que escreveu Conan na década de 1930 e morava com a mãe. É preciso MUITO pano para passar pro autor, e a pessoa que escreveu a introdução com certeza tinha de sobra.

Entre desculpas de que somente pessoas politicamente corretas iriam se incomodar com o racismo e o machismo do livro, ou que já é esperado esse tipo de coisa no livro, então tá tudo bem, vemos o quanto a sociedade atual aceita qualquer narrativa vinda de um autor branco estadunidense, principalmente se criou um personagem que todos consideram como sendo o auge da barbárie, da força bruta e da inteligência, estando acima do que ele chama de mundo civilizado – que, se você pensar bem, somos todos nós, leitores ou não. Em um mundo fantasioso, Conan reina absoluto em suas aventuras e fora delas, sendo admirado e invejado por homens que desejam ser como ele: poderoso, que não segue as regras impostas pela sociedade, que está acima dela e das pessoas que vivem nela, um felino ágil com um corpo tão forte que aguenta coisas que um humano comum não conseguiria sobreviver, além da mente afiada, com um pensamento rápido e preciso, sabendo quando atacar e quando fugir. Não podemos tirar o mérito da sua criação, mas Conan não é um personagem complexo – afinal, complexidade é coisa de intelectuais que jamais pisariam em um campo de batalha e venceriam – e talvez seja uma característica muito positiva, pois entendemos as suas necessidades e motivações mais facilmente.

Howard uniu diversos elementos que, em tese (assim como Lovecraft, seu amigão, o autor vivia dentro de casa), conheceria para moldar o seu protagonista. Foi rejeitado várias vezes antes de criar Conan e sua história, que foi quando finalmente ganhou as publicações a partir de 1932 na revista Weird Tales, chegando ao Brasil somente na década de 1970 e invadindo o imaginário do brasileiro, conquistando seu espaço definitivo por aqui. Em 2017, a maravilhosa Pipoca & Nanquim começou a lançar suas edições dos contos do bárbaro e são de encher os olhos. Uma pena que o conteúdo seja tão problemático, pois Howard não conseguiu se separar da própria obra e derramou nela todo o seu racismo, sua misoginia, seus preconceitos, o que arranca um leitor consciente da narrativa e estraga a experiência. Ao contrário do que já ouvi, não é uma questão de ser “politicamente correto”, expressão inventada para diminuir uma pessoa que tem consciência dos próprios privilégios ou mesmo que não os possui e sofre as opressões imprimidas no livro, e sim uma questão de… bem, como eu disse, ter consciência. Cada pessoa opta como vai receber a história, e várias preferem ignorar as problemáticas, afinal, Conan é um personagem carismático, a escrita é boa, as aventuras empolgam, então, pra que me preocupar se ela vomita racismo, colocando pessoas asiáticas ou negras como monstros ou inimigos sem muita consciência? Para que se incomodar em como as mulheres são meros objetos, criaturas estúpidas, histéricas, que vêem em Conan um ser superior a ser desejado?

Claro, não estou dizendo que esses livros devem ser excluídos e apagados da história, jamais lidos, mas há uma urgência pela necessidade do senso crítico e saber apontar que a obra, por mais que tenha sua importância na criação de um gênero ou que se considere como bem escrita, é problemática e não deve ser simplesmente aceita. O autor de Conan concebeu um dos mais emblemáticos personagens do subgênero Espada & Magia (considerado o seu criador, inclusive), mas não dá para ler e não perceber que ele se esforçou em produzir o pináculo da masculinidade: o homem bárbaro – branco, claro, no máximo bronzeado, e hétero. Constantemente Howard está nos lembrando que o seu protagonista não é um espécime qualquer, comparando-o com animais poderosos, como o tigre, e ressaltando sua musculatura superior, assim como seus trejeitos másculos; todas as mulheres caem aos seus pés, com a idealização do feminino frágil e dependente do masculino; e todos os seus inimigos são criaturas sobrenaturais ou homens/monstros negros e asiáticos. Salta aos olhos todos os podres do autor, porém, diz-se que esses detalhes são naturais (no caso das mulheres) ou imperceptíveis (relacionado ao racismo e à lgbtia+fobia), mas é aquela: não vê quem não quer.

Agora, antes de perguntar se as histórias de Conan deveriam ser proibidas, os livros queimados tal qual uma inquisição, eu já respondo: não. O grande problema aqui não é exatamente o livro ou o personagem – estes são frutos da mente do seu autor, e esse sim deve ser julgado e condenado. Não tem como escrever histórias em que não hajam personagens ou cenas controversas, afinal, a vida é feita delas também, e o grande infortúnio, nesse caso, é COMO tais assuntos são abordados. No caso das histórias de Howard, tudo ali é naturalizado, o que faz com que, por mais que o leitor não queira, seja internalizado e grude ali, naquele canto da sua mente, como algo corriqueiro. É necessário muito tato para criar narrativas que não preguem rolês errados, mas que tratem deles como devem ser tratados. Como exemplo, cito Nabokov e o seu livro mais famoso, Lolita (1955). O seu protagonista vai contra toda a moralidade humana, sendo pedófilo, incestuoso e estuprador. E qual a diferença entre Conan e Humbert Humbert, personagem principal de Lolita? Conan é um filho de seu autor, num sentido mais literal, empurrando a normatização de comportamentos não aceitáveis, enquanto Humbert nos é entregue como um narrador não confiável, implorando para que entedamos a sua suposta inocência, mas que foi feito de tal forma que, de cara percebamos o que há de errado, e Nabokov aproveita para introduzir a denúncia de duas coisas da nossa sociedade: o homem “comum” – hoje em dia chamamos de “cidadão de bem” – e as lolitas que vivem no seu imaginário, fazendo com que o personagem sete o tom, explorando um lado humano ao qual não estamos acostumados, um que não é muito bom, principalmente por “ser” o protagonista a contar tudo a partir do seu ponto de vista. Em suma, Nabokov foi fiel a Humbert Humbert, enquanto Howard foi fiel a si mesmo.

Arnold Schwarzenegger na adaptação de Conan para os cinemas
Arnold Schwarzenegger na adaptação de Conan para os cinemas

 

Conan, no final das contas, é a perfeita idealização do seu criador, e parte do seu sucesso advém da pressão social para que o homem seja exatamente como ele, possuindo a chamada hipermasculinidade. Esses corpos hipermásculos não são de hoje, sendo o resultado de uma estrutura machista que é perpetuada há muito tempo, mesmo antes de Conan, e atualmente estão cada vez mais em vigor, principalmente com o excesso de filmes de super-heróis. Esses personagens são grandes, fisicamente, fortes, poderosos, inteligentes e o alvo de desejo de ambos os lados.

Em 2018, a APA (Associação Americana de Psicologia) divulgou diretrizes para ajudar profissionais da saúde mental a lidar com homens e meninos, e estas reconhecem que as ideias sobre masculinidade variam nas diversas culturas e grupos de renda, etários e étnicos, entretanto, apontam para questões comuns como antifeminilidade, inflexibilidade, dificuldade em admitir fraqueza, violência e gosto pelo risco, aventura, conquista. E isso após 40 anos de estudos! Em resumo grosseiro, homens cometem a grande maioria de crimes violentos, possuem taxas de suicídio altas, mais doenças cardiovasculares, entre outros comportamentos que, mesmo possuindo “maior vantagem econômica do que as mulheres” na maior parte das vezes, isso não muda o fato de que normalmente morrem antes que elas, e a culpa dessa estatística é das dietas mais pobres, as atitudes que tomam são mais arriscadas, o fato de evitarem buscar ajuda para não parecerem fracos  etc. Judy Y. Chu, professora na Universidade de Stanford e autora de Quando meninos se tornam meninos, afirma que “Quando meninos e homens desafiam as construções patriarcais de gênero, correm o risco de ser percebidos como fracassados ou fracos“, e completa: “Mas quando mulheres, meninas e pessoas não binárias passaram a criticar sistemas patriarcais que as oprimiam, uma outra ideia começou a tomar forma: talvez esses sistemas também firam os homens, mesmo que lhes confiram certos privilégios”.

Daí podemos entender um pouco como Conan invade o imaginário popular, fazendo com que seja natural ignorarem os comportamentos indicados pelo autor como sendo normais – como atos racistas ou o tratamento da mulher como um ser completamente inferior. O importante é termos um personagem que cubra todas as qualidades pré-estabelecidas como sendo o epítome do homem superior.

E quanto ao argumento de ser um homem do seu tempo? Do local onde vivia? Da sua criação? Eles são válidos, claro. Não existe um modo real de se analisar a Literatura sem saber História, pois contextos são importantes. Você consegue entender melhor uma obra sabendo o período e os acontecimentos destes do que indo às cegas. Porém, não são justificativas que vão tornar a situação melhor, são apenas para a compreensão geral, como o vocabulário utilizado, a época em que se passa e a visão que se tem dela, entre outras coisas. Sabemos que Howard nasceu em 1909 e viveu somente até os seus 30 anos, vivendo períodos de grande segregação racial, passando pela Grande Depressão e outras situações críticas nos EUA. MAS, PORÉM, TODAVIA, ENTRETANTO! O racismo é um problema gigantesco no mundo até hoje, por exemplo. Então, o que faz escritores(as) de outras épocas ou da mesma não cometerem o mesmo erro? O que diferencia?

Fica aí a reflexão. E uma lista bacanuda para você conhecer escritores(as) com obras melhores!

Autores(as) e obras que foram para além de serem só fruto do seu tempo

  1. Úrsula K. Le Guin (1929 – 2008)  escritora estadunidense, mais conhecida por suas obras de ficção especulativa, incluindo os trabalhos de ficção científica ambientados no universo de Hain e a série de fantasia Ciclo de Terramar.
  2. Margaret Atwood (1939-) é uma escritora canadense, romancista, poetisa, contista, ensaísta e crítica literária internacionalmente reconhecida, atualmente popularizada pelo O conto da Aia.
  3. James Baldwin (1924-1987) foi um romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social estadunidense. Autor de Se a rua beale falasse, Terra estranha, Da Próxima Vez, o Fogo etc.
  4. Ralph Ellison (1914-1994) foi um escritor, crítico literário e acadêmico norte-americano. É mais conhecido por seu livro O homem invisível, que ganhou o National Book Award de 1953.
  5. Mary Shelley (1797-1851) foi uma escritora britânica, dramaturga, ensaísta, biógrafa e escritora de literatura de viagens, mais conhecida por Frankenstein: ou O Moderno Prometeu, e é considerada a mãe da ficção científica.
  6. Sheridan Le Fanu (1814-1873) foi um escritor irlandês de contos góticos e romances de mistério, mais conhecido por Carmilla: A vampira de Karnstein.
  7. Machado de Assis (1839-1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores o maior nome da literatura brasileira. Algumas das suas obras mais conhecidas são Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
  8. Carolina de Jesus (1914-1977) foi uma escritora, compositora e poetisa brasileira, mais conhecida por seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960. Foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil e é considerada uma das mais importantes do país.
  9. Maria Firmina dos Reis (1822-1917) foi uma escritora nordestina, considerada a primeira romancista negra brasileira, tendo lançado obras como Úrsula e A escrava.
  10. Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927) foi um escritor japonês ativo no Japão durante o período Taishō. Ele é considerado o “Pai do conto japonês”, e é famoso por seu estilo e suas histórias ricas em detalhes que exploram o lado ruim da natureza humana.