Cidade de Deus: A Luta Não Para Cidade de Deus: A Luta Não Para

Cidade de Deus: A Luta Não Para e algumas coisas não mudam

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

Faça uma rápida pesquisa com quem estiver do seu lado nesse momento. Peça para a pessoa listar os cinco melhores filmes nacionais que ela já assistiu. Para facilitar, pode perguntar os filmes mais famosos no lugar. Certamente Cidade de Deus (2002) estará entre as obras citadas. Não que seja algo surpreendente, dada a qualidade e projeção internacional que o filme teve na época e sua importância histórica celebrada até hoje. Nomes como Zé Pequeno, Bené e Buscapé fazem parte do imaginário nacional. Então, como continuar essa história sem manchar o legado já estabelecido? Essa é a missão de Cidade de Deus: A Luta Não Para, nova série nacional da HBO.

As legacy sequels – como foram batizadas nos EUA – costumam se apossar de parte significativa da nostalgia do espectador para recontar uma história com toques de modernidade. Para isso, colocam atores celebrados para reinterpretar personagens famosos num novo contexto. Top Gun: Maverick é um exemplo. No entanto, com raras exceções, esses filmes não passam de um caça-níquel da indústria para lucrar em cima do saudosismo. “Cidade de Deus: A Luta Não Para” se encaixa nesse grupo, mas parece resistir em seguir o caminho mais fácil. Ao julgar pelo primeiro episódio, a série respeita o passado enquanto busca contar algo novo ao espectador. Há, portanto, uma razão de existir para a produção.

A série é ambientada no início dos anos 2000, 20 anos após os acontecimentos do filme original. A Cidade de Deus cresceu e mudou. O cenário do crime organizado também se reinventou, com a presença mais marcante da política e novos elementos, como as milícias. Wilson/Buscapé (Alexandre Rodrigues) agora é um renomado fotógrafo conhecido por registrar imagens de mortes violentas nas comunidades. Mesmo fora da CDD, seu trabalho insiste em não o deixar longe do seu antigo lar. Existe uma aparente paz no ar, que logo se dissipa quando Bradock (Thiago Martins) é solto da prisão e tenta retomar sua vida criminosa ao lado de Curió (Marcos Palmeira). O atrito entre os dois pode mudar novamente a estrutura de poder na Cidade de Deus.

Como era de se esperar de um episódio inaugural, existem altas doses de didatismo para situar o espectador na atual realidade dos personagens. O uso de flashbacks serve para refrescar a memória a respeito de antigos rostos do longa de 2002, especialmente os que não tinham tanto destaque na trama. Mas o roteiro escrito por Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha não se deixa levar pelos momentos de nostalgia barata, focando no papel de novos e antigos personagens na trama principal da temporada. Outro trunfo de “A Luta Não Para” está justamente no formato de série de TV, que pode trabalhar melhor o tempo para se aprofundar em questões pertinentes do roteiro e explorar o contexto social da época sem parecer raso demais.

Entra em debate também a figura de Wilson/Buscapé. É curioso pensar que o protagonista dessa história está longe de ser o personagem mais interessante no meio de tantas alegorias hipnotizantes. Se no longa de 2002 foram os criminosos que roubaram a cena, na série Wilson retorna ao seu papel de narrador e observador em busca de sua própria agência. Cansado de ganhar a vida fotografando o pior lado das comunidades do Rio de Janeiro, ele sonha com novos rumos para o seu trabalho. Agora como pai, Buscapé vive no limiar entre julgar o estilo de vida em Cidade de Deus e honrar sua raízes.

Sem a direção primorosa de Fernando Meirelles e Kátia Lund, “A Luta Não Para” se vale de um novo e poderoso expoente do audiovisual nacional: Aly Muritiba. Conhecido por seu trabalho na excelente “Cangaço Novo“, Aly homenageia o estilo empregado em “Cidade de Deus” na medida em que aplica seu estilo mais moderno de direção. O uso da linguagem televisiva distingue as duas obras e ao mesmo tempo atrai novos espectadores.

Um episódio é pouco para julgar e projetar toda a temporada, mas “Cidade de Deus: A Luta Não Para” tem um começo promissor. Respeitando o passado ao mesmo tempo em que olha para o presente, a série demonstra que, embora duas décadas tenham passado, a essência de certas coisas nunca muda de fato.

“Cidade de Deus: A Luta Não Para” segue em exibição na Max, com novos episódios aos domingos.