Chegando o período carnavalesco, interessante uma volta ao tempo para analisarmos brevemente essa datação do ponto de vista medieval. Mas por que, com uma festa tão global, temos essa proposta específica? Observemos as palavras do historiador Jacques Le Goff quando diz que devemos ‘’nos preocupar com todo o conjunto de fenômenos que constituem a cultura ou, melhor, a mentalidade histórica de uma época.’’
(História e Memória, 1977)
O medievo tem uma bagagem cultural ao longo do imaginário humano muito forte na civilização europeia e suas exportações para outros países. E mais que isso, as raízes cristãs estão solidificadas nesses terras.
Sobre a etimologia da palavra, divide certos filólogos e estudiosos. Encontramos carna vale (adeus a carne) ou carna levamen (extinguir a carne) como uma visualização prévia da Quaresma. Outra interpretação é a currus navalis (carro naval), sendo vinculada ao começo da Primavera, com desfiles marítimos e carros em forma de barco, originadas na Grécia e Roma e depois os Teutões anterior ao Cristianismo.
Na Idade Média, o carnaval era conhecido como ‘’Festa dos Loucos’’, pois existia a perda da identidade cristã nesse período, substituída pela pagã. Essa era uma forma da Igreja, em esforço, admitir certas práticas e costumes pagãs como forma de expandir o Cristianismo e ao mesmo tempo ser uma forma de evasão diante das premissas no período da Quaresma.
Saindo para as ruas, bebendo, dançando e cantarolando, os cristãos não-convertidos, rendendo-se ao festival e seus costumes de raízes pagãs. Era o momento que o sagrado que regia a vida das pessoas era profanado. Nesse período, vivia-se aos avessos, pois a vida religiosa e oficial era trocada pelo seu oposto: pagã e carnal. Mesmo não sendo oficial, a Igreja admitia essas práticas como forma de intensificar a cobrança com rigor religioso no período litúrgico quaresmal.
Na Festa dos Loucos, originada das Saturnais Romanas e antecessora do Carnaval moderno, participavam também o baixo clero e seus estudantes, e caracterizavam ainversão temporária da ordem eclesiástica. Eram líderes e papas de um mundo ilusório/utópico nesse cenário carnavalesco. O filósofo e estudioso da cultura popular e universal, Mikhail Bakhtin descreve a vivência dual do homem medieval:
”Os homens da Idade Média participavam igualmente de duas vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso e sério, o outro cómico … No entanto … uma fronteira interna delimita os dois aspectos: mesmo existindo lado a lado, eles não confundem, não se misturam.”
(BAKHTIN, 1987, p. S3).
Assim era o medieval no que diz respeito aos costumes carnavalescos e quaresmal. Mesmo em uma sociedade tripartite, de oratores (os que rezam, oram), bellatores (os que lutam, os bélicos) e os laboratores (os que labutam, trabalham) todos compartilhavam individualmente como uma moeda: existem dois lado em uma mesmo corpo, porém nenhum dos lados se misturam, mas cada qual compõe aquele objeto.
A melhor representação plástica sobre o tema é a pintura de Pieter Bruegel ”O Combate do Carnaval e a Quaresma”, onde, do lado esquerdo temos a festa do carnaval. Do lado oposto, o lado da Quaresma. Entre vários personagens, temos de um lado a Gula e do outro o Jejum, simbolizados no homem do medievo.
Na literatura, temos o conto La Bataille de Caresme et de Charnage (autor desconhecido) personificam os dois lados. Charnage é um barão do reino Franco com posse de vasto território que tem como adversário Caresme, poderoso e rico, dono de abadias e senhor dos mares.
Temos a impressão de que essa divisão do festivo e recolhimento também seria uma alusão à divisão de corpo e alma. Mas não é bem assim. Confessamos que existe uma tentativa da Idade Média e dos pensamentos clássicos da renúncia do corpo. As definições de Platão – que a alma preexiste perante ao corpo – fortificam o conceito do desprezo do corpo para os cristãos. Mesclando nesse contexto, as definições de Aristóteles – que a alma é uma forma do corpo – chegam no pensamento que os dois são indissociáveis. Na Bíblia diz: O Verbo se fez carne.
O padre francês Elphège Vacandard (1849-1927) relatava sobre o ‘’carnal’’ no período após o Carnaval:
‘’Os preceitos eclesiásticos afetavam muito mais que o estômago. A doutrina prescreve várias obrigações na Quaresma. O contato carnal deveria ser tão evitado quanto a ingerência de carne vermelha. Exigia-se dos esposos contenção nas relações sexuais. As festas, inclusive as dos santos, as diversões, núpcias, jogos, representações teatrais, processos criminais e outras atividades não poderiam ser realizados. A observância da regra moral integrava exercícios de caridade e a frequência constante aos ofícios religiosos. Em suma, neste período todos os fiéis deveriam submeter-se a uma série de penitências, práticas piedosas e purificação espiritual via mortificação’’
(VACANDARD, 1925b, p. 2153).
No Brasil, uma corrente desse imaginário medieval veio – como de costume – de Portugal através do ‘’entrudo’’ com uma gama de atividades como arremessar pós, perfumes, ovos, areia e demais componentes. Existiam os Entrudos de Família (que eram mais reservados, com um conjunto de famílias e consistiam em arremessar limões de cheiro como forma de estabelecer os laços entre elas) e os Entrudos Populares (que aconteciam nas ruas das cidades, de maneira mais violenta, muitas vezes com o lançamento de urina e sémen).
No seu livro ‘’O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro’’ o pesquisador Felipe Ferreira fala que essa realidade do entrudo foi se distanciando quando o país foi ficando mais desenvolvido e sentindo a necessidade de se afastar no passado português. A burguesia do Rio de Janeiro procurou o modelo parisiense de carnaval na forma de sofisticar com bailes e desfiles de carros alegóricos.
Mas devemos nos atentar que houve um distanciamento da exclusividade do carnaval lusitano no Brasil, e não sua extinção. Uma mistura que não pertence a elite e nem ao popular, originando assim os blocos, marchas e demais manifestações pluricarnavalescas.
Devemos observar o Carnaval Medieval como uma manifestação, e não só como espetáculo. Isso deve-se ao fato que o homem medieval vivia realmente o movimento nesse período e não era um simples espectador. Eram condutas de carne e alma sendo anualmente quebradas e refeitas. Entre tantos costumes herdados, a ‘’Festa dos Loucos’’ está presente nas nossas ruas. Mais do que pular e acompanhar os refrãos do momento (ou somente observar), paremos um pouco para pensar no contexto social e imaginário humano que leva a mobilização de muitas pessoas. Carnaval chegou? Bem, tem a quaresma depois…
Rodrigo Passolargo é Diretor da Fábrica do Mito, Escritor, Contista, Presidente do Conselho Sociedade Tolkien (gestão 2015-2017) licenciando em História e palestrante sobre o gênero fantástico e cultura pop
Texto publicado originalmente na plataforma Toca CE.