Fila do perdão pra todo mundo que tem preconceito com o audiovisual nacional. Cangaço Novo, série brasileira lançada recentemente pelo Prime Vídeo, é, sem dúvida, uma das melhores produções disponibilizadas no streaming em 2023.
Duvida? Duvide não! Dirigida por Fábio Mendonça (Vale dos Esquecidos) e Aly Muritiba (Deserto Particular) – cada um dirige quatro episódios –, a série nos leva para o sertão do Ceará, numa cidade fictícia chamada Cratará. Mas a história começa em São Paulo, com um cara chamado Ubaldo (Allan Souza Lima), que se encontra desempregado e tá com o pai adotivo doente no hospital. Depois de achar uma carta, ele segue viagem com destino a terras alencarinas na expectativa de resgatar lá uma suposta herança, mas acaba encontrando outra coisa. Encontra a verdade sobre seu passado, a existência de duas irmãs e um rastro que irá levá-lo a se envolver com um bando de cangaceiros contemporâneos.
Isso é só uma lasquinha do que temos na série, que já nos primeiros minutos te agarra com força e não solta mais. Em Cangaço Novo, tudo é primoroso, desde a direção dos episódios – com direito a planos sequência nada gratuitos –, passando por fotografia, direção de arte e montagem, até o poderoso trabalho dos atores.
E talvez seja aí que Cangaço Novo mais se destaca. A produção da série foi precisa na escalação do elenco, que deixa de lado os “globais” – sempre com seus sotaques pasteurizados em produções do tipo – e dá vez a atores verdadeiramente nordestinos. O resultado disso é uma naturalidade que transborda na tela. Todo mundo tá bem e fica difícil falar quem se destaca mais.
Minto, o núcleo principal destrói! Allan Souza Lima (A Menina que Matou os Pais) encarna muito bem a figura do Ubaldo Vaqueiro, descendente dos Vaqueiro de Cratará e que, pouco a pouco, desencarna da pele de um cara mais contido para revelar um lado que nem ele conhecia. O ator interpreta ainda seu pai biológico, Amaro Vaqueiro, que aparece em flashbacks em alguns momentos da série e acrescenta à trama um lado mítico que envolve o falecido patriarca da família.
Alice Carvalho (Septo) é outra que humilha. A atriz faz Dinorah, irmã de Ubaldo que não leva desaforo pra casa e se impõe na frente de qualquer macho metido a besta. A personagem integra o bando de cangaceiros e não se intimida na frente de nenhum deles, apresentando ao longo dos episódios camadas que enriquecem muito a personagem.
Completo a trio principal a atriz Thainá Duarte (Aruanas) interpretando a irmã Dilvânia, que por não falar precisa se comunicar apenas com gestos e expressões. Um desafio a mais para a atriz, dando a ela muito material para brilhar em todas as cenas em que aparece.
Outro ponto alto da série está em sua trilha sonora. Entre as músicas, temos composições de Chico Science, Fagner e Milton Nascimento. E como se não bastasse, os episódios trazem uma trilha sonora instrumental evocativa, cheia de notas regionais, que contribui com muita eficiência para a imersão dentro do universo da produção.
Falando um pouco do roteiro, a série traz uma história que, mesmo bebendo de diversas fontes, acrescenta um tempero regional – a exemplo do excepcional Bacurau (leia crítica) – que a destaca de tantas outras. Seus personagens de maior visibilidade – com exceção do núcleo dos políticos, que é mais unidimensional – são retratados de forma complexa, revelando lados bons e ruins, o que os humaniza e contribui para uma maior identificação do espectador.
Acrescentando à mistura diversas temáticas, como injustiça social, luta de classes, corrupção dos poderosos, questões econômicas, fé do sertanejo, entre outras – tudo envelopado num produto de fácil alcance –, Cangaço Novo tem todos os ingredientes pra se tornar algo realmente marcante dentro do audiovisual (e quiçá, da cultura pop) nacional. Tô sendo muito otimista? Se depender da qualidade da série, acredito que não.