O texto a seguir contém spoilers leves do episódio Playtest (s03e02) da série Black Mirror.
A nova temporada de Black Mirror já estreou e já está trazendo desespero para os lares de vários viciados em Netflix. Para quem não conhece, Black Mirror é uma série britânica que traz vários contos mostrando os males da tecnologia em ambientações de futuros próximos. O pessimismo e a proximidade com a nossa realidade são assustadores e nos fazem refletir de forma depressiva sobre como será nossos próprio futuro.
Pois bem, quando fiquei sabendo que o segundo episódio falaria sobre games já fiquei animado, pois é minha área de estudo e fiquei bem curioso de como eles tratariam o assunto. Para minha surpresa, parece que os roteiristas fizeram o dever de casa, pois o argumento traz conceitos já estudados e discutidos por game designers e interessados no assunto. Resumidamente, o episódio conta a história de um jovem que experimenta um novo tipo de jogo que implanta as experiências direto no seu cérebro e acaba tendo um verdadeiro pesadelo ao testar um jogo de terror versão beta.
O tema central do episódio já é dado como dica em seus primeiros minutos quando o personagem fala com uma menina sobre o medo de avião: “Imagine que é uma montanha russa”. Mais tarde, o designer do jogo ( uma versão bizarra de Hideo Kojima ) fala algo sobre “diversão é perigo sem a chance de morrer”. Isso não poderia estar mais alinhado com o que alguns estudiosos acham. Um dos principais aspectos da diversão é a surpresa, é você enfrentar desafios inesperados em um ambiente controlado. A montanha russa e um jogo de terror são similares nesse aspecto, ambos te causam um medo, ativam a adrenalina no seu cérebro que te causa um barato, mas ( teoricamente ) não tem perigo de morte real. É por isso que as pessoas saltam de para-quedas, assistem filmes de terror, contam histórias macabras em volta da fogueira e afins.
Outro conceito bem usado e que gosto bastante dentro do estudo dos games é que o jogo é somente uma ferramenta para passar uma experiência. O objetivo do jogo é fazer você experienciar coisas. Se existisse uma ferramenta para injetar diretamente experiências na nossa mente, os jogos seriam obsoletos, pois eles não conseguem emular 100% aquela situação, por melhor que o jogo for. Fiquei abismado quando o episódio trouxe justamente esse conceito e tenho que admitir que me assustou um pouco. Eu que sempre quis que isso existisse fiquei meio receoso em ver esse tipo de tecnologia à venda, imagina se o negócio dá um problema e nunca desliga, ficaríamos presos em uma realidade simulada para sempre. Além disso, a experiência pode ser intensa demais para algumas pessoas, é provável que ocorressem ataques do coração ou crises de pânico por causa de jogos. Em parques de diversão existem seguranças que impendem certas pessoas de brincar em certos brinquedos, mas na casa de cada um não teria esse controle e as casualidades poderiam acontecer.
a vida imita a artePor mais que eu tenha achado esse episódio fraco em relação aos outros (não tem muita crítica social, foca muito no terror), ainda deixou aquele gosto amargo na boca no final e nos faz refletir. Qual seria o limite dessas experiências? Será que o ser humano vai sempre tentar emular a realidade o máximo possível nos jogos? Se a gente emular a realidade tão bem assim os jogos vão perder a graça? Eu acredito que, mesmo que a tecnologia chegue ao ponto de implantar experiências em nossa mente, ainda vão existir jogos da forma como vemos hoje por muito tempo. Para toda tecnologia que aparece, sempre vão existir pessoas que não querem entrar no hype, ou que não acreditam que aquilo tem que ser seguido à risca. Mas Black Mirror geralmente nos traz essa abordagem: pode ser até que você não aceite as coisas como são agora, mas essas tecnologias vieram para ficar e não há nada que você possa fazer para mudar isso em escala global.
Ps: Para quem quiser iniciar seus estudos na área de Design de Jogos e entender melhor a relação entre experiência e jogos, recomendo o livro A Arte do Game Design, de Jesse Schell.