No saguão do cinema Dragão do Mar, em Fortaleza, era possível encontrar um homem careca, sorridente e empolgado com a presença de mais de 150 pessoas para sua sessão de estreia. Todo entusiasmo não era para menos. Foi um genuíno encontro da animação cearense para assistir ao primeiro longa de Marcelo Marão. Todos queriam ver um dos mais premiados e bem sucedidos animadores brasileiros em festivais pelo mundo a fora, sempre com curtas, agora em longa duração.
Conversei com Marcelo Marão minutos antes do filme começar. Ele estava realmente animado. Sua surpresa com adesão do público cearense era perceptível. “Tem fila, como se fosse o lançamento de um filme de verdade”, dizia Marão. Seu bom humor e amabilidade de sempre tinham uma mesma fonte: ver a linha de chegada de uma produção realizada com mais de 200 mil desenhos, feitos em 10 anos. “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” é a estreia de um monstro, não marinho, mas da batalha árdua da animação e da arte nacional.
O filme conta a jornada de uma mulher com esdrúxulos superpoderes, uma tartaruga com transtorno obsessivo-compulsivo e uma nuvem com incontinência pluviométrica em uma insólita busca por uma cura no fundo do oceano. Difícil é a tarefa dos historiadores e críticos do cinema para classificar tal obra. A narrativa é uma fábula? Sim, também. E, ao mesmo tempo, uma aventura com toques de diálogo, por vezes nosense, de um humor entre o infantil e o espontâneo. A lógica dos curtas, da piada rápida, permanece, mas com um grande arco, uma liga alternativa de heróis que carrega uma troca dramática muito interessante.
Distante das formas mercadológicas da animação e extremamente autoral, o filme é a cara do Marão. Não apenas dele, mas da Rosária e do Miller. Nomes que Marão repete sempre para falar dessa aventura paralela de um outro trio. Não da mulher, da tartaruga e da nuvem, mas sim desse trio de animadores. É possível sentir o suor, a dedicação e a “manualidade” em cada frame do filme.
“Esse é um filme estranho e todo errado”, avisa o sorridente Marão. Isso porque eles não trabalharam com um “model sheet”. Ou seja, não há um padrão de desenho para que os personagens não sofram alterações, conforme passem pelas mãos de outros artistas. O que falta de padrão industrial, sobra de vida e de textura. Quase é possível ver os animadores trabalhando. É como se você enxergasse as mãos dos criadores, enquanto assiste ao filme. Como se eles deixassem pistas para nós, dizendo: “essa animação está aí porque eu estive aqui”.
“Bizarros Peixes das Fossas Abissais” é a genuína presença. Não só do trabalho dos animadores, montadores, mas também da música deliciosa de Duda Larson, gravada pelas mãos de músicos verdadeiros, em instrumentos orquestrais, na cidade de Tatuí, interior de São Paulo. Em tempos de inteligência artificial, Marão oferece algo tão saboroso quanto essa percepção de humanidade.
O filme também é presença no assunto desenhado. Os tais esperados peixes das fossas abissais aparecem, durante 16 minutos, em uma sequência que, ao meu ver, homenageia a experimentação e a criatividade da cena dos curtas brasileiros de animação. Isso porque Marão sempre curtiu aqueles documentários de peixes do desconhecido fundo do mar que passavam na Discovery. Nenhum peixe é inventado da cabeça dele. Eles existem mesmo. Seu encontro com biólogos e pesquisadores ajudou nisso.
Um rigor de realismo contrapondo-se à criatividade exuberante de Marão faz a genuína animação brasileira. Com humor, cor (e às vezes ausência de cor), com a voz de brasileiros nos personagens, com histórias imaginativas e, principalmente, feito à mão, literalmente.
Que sorte a nossa! O filme, para surpresa de Marão, venceu a primeira semana das salas de cinemas. Está indo para a sua segunda semana; aproveite para tentar assistir e prestigiar. Afinal, por vezes o povo brasileiro se rejeita na tela enquanto lá fora, nos festivais internacionais, um filme como esse chega longe.
O próximo desafio é o Prêmios Quirino, uma das mais importantes premiações da animação ibero-americana. “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” disputa o troféu de Melhor Longa-Metragem de Animação. Vale a torcida e, cada vez mais, vale a presença do público na animação nacional.