Você provavelmente assistiu a Zootopia (2016), filme da Pixar que levou o Oscar em 2016. E se assistiu, vai sentir uma semelhança quando se deparar com o novo original da Netflix, Beastars – O Lobo Bom (2019), baseado no aclamado mangá de Paru Itagaki. Mas não se engane: apesar de premissas similares, baseadas em universos em que animais humanoides tentam conviver pacificamente, há camadas e conflitos que distanciam as duas obras.
Enredo
O plot é básico: há uma sociedade que é dividida em duas – herbívoros e carnívoros. A convivência pacífica é estimulada e, para isso, este último grupo precisa reprimir seus instintos naturais para o bem coletivo. Mesmo assim, isso não impede que preconceitos, rejeição, ou mesmo casos de bullying surjam.
Dentro desse contexto, há Legoshi, um lobo cinzento de 17 anos e muito tímido. Legoshi, nosso protagonista, tenta a todo custo reprimir o que realmente é, o que podemos notar também pela sua postura sempre recurvada. Membro do clube de teatro, ele é estudante da Cherryton School, que será palco principal para a maior parte do nosso enredo.
O desenrolar dos fatos começa quando Tem, uma alpaca e estudante da Cherryton School, amigo do nosso herói, é brutalmente assassinado por um carnívoro dentro da escola. A partir disso, entendemos as regras desse mundo e os conflitos de cada personagem, sejam eles herbívoros ou carnívoros.
A habilidade da autora se mostra quando ela usa esses animais para trabalhar questões tão verdadeiras para o nosso mundo comum, humano. A questão do preconceito, da rejeição, do bullying, do julgamento contra uma fêmea sexualmente ativa (representada aqui por Haru, uma coelha, animal que tem uma reprodução intensa), dos sacrifícios feitos para se tornar aceito – ou aparentar ser mais forte, mesmo sendo um animal mais fraco, tudo é trabalhado com primazia por essa ótima antropomorfizada. E conforme esses tópicos vão sendo mostrados, uma camada mais superficial, as questões mais internas dos personagens são apresentadas. Nada é entregado pronto, e Beastars tem ótimos personagens – como o cervo Louis, charmoso e tão obcecado pela perfeição, ou o panda Gohin, que surge em um momento bastante oportuno.
Não dá para dizer, no entanto, que não há problemas. Durante boa parte do anime, senti falta daquilo que motivou o enredo – a morte do Tem – ser trabalhado. Já na trama da Haru, me senti incomodada com a maneira como ela, lá na frente, vai ser tratada como uma espécie de prêmio de batalha (com frases como “A Haru será minha!”). Há, de fato, uma questão bastante particular nesse discurso, mas mesmo antes disso a sensação que passou foi a mesma de tantos outros shounens na forma como eles veem a personagem feminina. A Haru é importantíssima e tem um arco muito interessante dentro do enredo. Contudo, nesse ponto, talvez resquícios de uma herança shounen não tão interessante tenham respingado dentro da obra. Dá para passar, mas incomoda.
E mesmo que os temas de Beastars sejam densos e incômodos, há momentos extremamente divertidos no anime: como no momento em que os canídeos estão aparando os pelos, ou quando os animais precisam se reunir na sala de biologia, uma espécie de “vamos confraternizar no nosso habitat natural”. Nada, porém, supera o rápido filler de Legom, uma galinha super focada e esforçada. Um adendo: quando você for assistir e passar por este filler, aconselho a reler este post. Estamos combinados?
A animação
Encomendada pela Netflix Japão, Beastars foi produzida pelo estúdio Orange, especializado em 3D. Houve uma preocupação sincera em manter a fidelidade ao traço original da autora e, mesmo sendo uma animação computadorizada, há momentos em que você sente que está assistindo a um anime 2D. O resultado pode ser um pouco estranho à primeira vista, porém também atrai o olhar. E os movimentos de câmera são certeiros, principalmente nas cenas de luta ou em momentos mais imersivos.
Outro ponto foi o cuidado da Netflix com a dublagem, que foi encomendada em várias línguas. Aqui em casa, não assistimos com o áudio original em japonês. Faz algum tempo que eu tenho dado preferência à dublagem brazuca se tratando de animes, talvez por uma nostalgia gostosa da infância. Não me arrependi em nada pela minha escolha. A versão brasileira está excelente, com ótimas adaptações – principalmente em momentos onde há abertura para gírias, o que gera boas risadas.
Mas nada supera a abertura lindíssima, em stop-motion. Não dá nem vontade de pular. Sem muita enrolação, apenas assista:
Veredito
Antropomorfizar animais é um tema comum à humanidade desde o nosso surgimento. Foi por meio de fábulas, por exemplo, que escritores como Esopo e La Fontaine conseguiram falar sobre ser humano de uma maneira mais clara e palatável. Beastars – O Lobo Bom se encaixa aqui também. Sua genialidade se dá pelo título (Beasts? Be a Star?), pelos personagens esféricos, complexos, e as tramas que se entrelaçam e por essa capacidade bonita de conversar com o que fica dentro da gente – tanto o lado bom quanto o ruim. Tudo isso através de uma animação que enche os olhos daquele que vê.
A segunda temporada já foi confirmada pela Netflix. Até lá, é segurar a ansiedade e correr atrás do mangá.