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As múltiplas camadas de Loki

A mitologia nórdica é muito conhecida. Desde sempre somos bombardeados com séries, livros e filmes que retratam essa cultura religiosa. Ora, sabemos mais nomes de deuses do panteão nórdico do que de santos da igreja católica! Conhecemos Odin, Thor, Loki, Freya, as Valkírias (como Brunhilda), Hela… Sabemos sobre o Ragnarok, e a serpente de Midgard, Jörmundgander, Hela, Fenrir, os gigantes de gelo. Mas aposto que você provavelmente não sabe exatamente como a Bíblia retrata o apocalipse. Talvez sobre os 4 cavaleiros.

Dito isso, vamos ao que realmente interessa: Loki. O deus da trapaça e da travessura, feiticeiro, filho legítimo do gigante de gelo Laufey e adotivo de Odin. No MCU, o personagem é retratado primeiramente como o irmão invejoso de Thor, primogênito, deus do trovão, poderoso, líder, carismático. Não que Loki não tenha nenhuma dessas qualidades, mas o fato dele ser preterido em nome do mais velho, que obviamente é arrogante e irresponsável, enquanto ele é inteligente e organizado, o enche com o sentimento nocivo da inveja. Assim, toma medidas drásticas para tentar destruir o irmão – ao qual ele falha. Todas as vezes.

Ao longo dos filmes, vemos Loki transitando entre vilão e anti-herói em vários momentos. Depois de Os Vingadores (2012), ele nem mesmo é visto mais como uma ameaça real e sim como alguém que pode ser facilmente derrotado, tendo um modus operandi muito repetitivo. O deus da trapaça é obviamente narcisista, com ideias de grandiosidade e poder, porém, ele não é apenas isso e a sério joga na nossa cara todos os motivos pelos quais amamos o personagem – e não é somente porque Tom Hiddleston é extremamente carismático.

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Em Thor (2011), Tom Hiddleston dava as caras como o Deus da Trapaça

Transtorno de Personalidade Narcisista

Pessoas com esse transtorno têm dificuldade para regular a autoestima precisam de louvação e afiliações com pessoas ou instituições especiais; eles também tendem a desvalorizar outras pessoas para que possam manter uma sensação de superioridade.” (Fonte: MANUAL MDS).

No início da série Loki, Mobius praticamente faz esse diagnóstico para o deus da trapaça, que obviamente nega. Mas, para quem acompanha os filmes e observa o personagem com atenção, consegue enxergar com clareza o seu narcisismo, a sua necessidade de atenção, o fato de querer ser melhor do que todos no recinto. Temos até a cena em que ele descobre que a outra Variante é “ele” e se autodeclara como uma versão superior à que estão caçando.

No meio psiquiátrico e acadêmico, ainda não há um consenso do que faz com que a pessoa desenvolva esse Transtorno de Personalidade, mas uma das teorias cita que os cuidadores (pai, mãe, avós… enfim, os responsáveis legais) não trataram a criança de maneira adequada, por exemplo, sendo muito críticos ou elogiando demais. Sabemos, pelo que Loki diz, que para compensar o fato de Odin dar mais atenção a Thor, Frigga, de certa forma, deu mais atenção ao mais novo, sendo até mesmo sua tutora nas artes mágicas. Normalmente, narcisistas possuem talento ou habilidades bem desenvolvidas, que os tornam acostumados a serem sempre apreciados e admirados.

Loki é obrigado a ser confrontado com esses aspectos de si mesmo na série, finalmente admitindo que sim, precisa dessa atenção. Mobius faz o papel de terapeuta. Óbvio que, como não pode ser alongado e não há tempo para que haja de fato um tratamento terapêutico real, os roteiristas se utilizaram de outros recursos narrativos para isso, mas incluindo o que seria a maneira correta de se tratar um narcisista. Vou dar aqui o exemplo:

Psicoterapia focada em transferência concentra-se na interação entre paciente e terapeuta. O terapeuta faz perguntas e ajuda os pacientes a pensar sobre suas reações de tal modo que possam examinar suas imagens distorcidas, exageradas e irrealistas do eu durante a sessão.” (Fonte: MANUAL MDS).

Conseguem reconhecer as cenas de Loki e Mobius nesse tratamento? Dentro da série, souberam encaixar de forma orgânica, em narrativas bem estruturadas e conversas naturais. Não parece forçado, como se o personagem estivesse numa sala de terapia, mas sim criando um vínculo, um laço com Mobius, que, desde o princípio, simplesmente o aceita – algo novo para Loki. Sem falar que o agente não cai nas falcatruas do deus da trapaça, que passa a enxergá-lo como um igual e não alguém inferior e, assim, chegar à amizade.

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Owen Wilson e Tom Hiddleston na série do Deus da Trapaça. Divulgação: Disney+

 

A Bissexualidade de Loki

Durante o terceiro episódio da série, o que todo mundo ficou dizendo que era filler ou desnecessário (e estão errados), Loki está com a Variante perseguida que, teoricamente, seria outro Loki, mas ela deixa claro que seu nome é Sylvie. Em conversa, pela primeira vez o personagem interpretado por Tom Hiddleston fala sobre a sua sexualidade. Óbvio que, por ser Disney e Marvel e ambas ainda estarem engatinhando nessa questão de inclusão nas telonas, não foi usada a palavra bissexual, e sim algo como “um pouco dos dois”, ao que Sylvie concorda.

Como a bissexualidade ainda é vista de forma muito errada, vou resumir rapidamente o que isso quer dizer. Quem é bi se atrai por todos os gêneros, ou seja, gostamos da pessoa por quem ela é e não pelo que se parece (aparência feminina ou masculina). Há alguns poréns, pois bissexualidade também é o que chamamos de “termo guarda-chuva” – ou seja, existem nuances dentro dessa sexualidade, mas não cabe aqui explicar, pois é muita coisa. Em resumo, sexualidade é uma coisa fluida e não está escrito na pedra que você é obrigado a seguir uma regra específica.

Voltando a Loki, após o episódio, a equipe de produção se manifestou e canonizou o termo, afirmando com todas as letras que sim, o personagem é bissexual. Nos quadrinhos, o deus da trapaça já havia se assumido como pansexual, então já sabíamos que hétero ele não seria, e foi muito importante que a conversa entre as duas Variantes tenha acontecido, principalmente à luz das cores da bandeira bi (sem brincadeira, prestem atenção na cena e verão roxo, rosa e azul). Representatividade importa, e, sinceramente, me sinto contemplada.

Sylvie: transgeneridade ou machismo?

Tanto na mitologia quanto nos quadrinhos, Loki é “declaradamente” gênero fluido. Por quê? O motivo é simples: o personagem transita entre os gêneros, e para além deles também (um olá para o Loki égua e grávido!). Para quem não entende bem, aqui vai um resuminho super-simples:

  • Transexual/Transgênero(a): homem e mulher trans;
  • Travesti: identidade de gênero transfeminina latino-americana (existem outras identidades locais como as Muxes do México, as hijras da Índia e os two-spirit do Canadá);
  • Não-binária: não se identifica na binariedade de gênero (aqui entra o gênero fluido!)

Isso é simplificar demais? É, mas não cabe aqui explicar com detalhes e você facilmente encontra vídeos, textos, artigos que podem elucidar suas dúvidas. No momento, foquemos em Sylvie.

Quando ela e Loki se conhecem, ele a chama pelo próprio nome, pois, até então, entendia-se que era outro Loki que estava aterrorizando a agência e a linha temporal sagrada. Entretanto, ela imediatamente corrige o deus da trapaça: “Eu não sou Loki, sou Sylvie”, ao que o outro simplesmente aceita e continua seguindo o bonde da conversa. No último episódio lançado, a personagem revela um pouco da sua história e descobrimos que ela foi considerada uma Variante por ser mulher. Aqui, abriu-se caminho para as pessoas interpretarem de duas maneiras.

A primeira é que Sylvie é alvo de machismo, pois o mundo não consegue aceitar mulheres emponderadas e fortes, logo, ela foi perseguida. A segunda: ela é uma mulher trans, e é aqui que eu acho que está a verdade. Explico.

Na tal linha do tempo sagrada, Loki é lido como homem, logo, não pode ser uma mulher, pois atrapalharia o desenvolvimento dos fatos que querem que aconteça. O deus da trapaça, obrigatoriamente, teria que ser HOMEM. Não sabemos se quando Sylvie nasceu foi identificada como menino ou menina, mas temos o conhecimento de que o momento em que a consideraram uma Variante foi quando se tornou… ela mesma. Por ser mulher, tinha que ser apagada. Ou seja, dá a entender que se tivesse permanecido no gênero masculino – como foi o caso de Loki, não teria sido considerada um erro. A partir do momento em que se percebeu como Sylvie, sua linha do tempo tinha que ser apagada.

Em resumo, Sylvie sofre machismo? Sim, mas é de tabela, já que o fato de ser mulher é um problema para a TVA, mas o que a torna um verdadeiro empecilho é: ela deveria ser Loki, não Sylvie. Como alguém que tem a habilidade de se tornar quem ou o que quiser, foi fácil para a personagem se tornar quem realmente é. Exceto que, assim como na sociedade atual, pessoas trans são invisíveis e marginalizadas, isso quando não são alvo de transfobia e são espancadas e mortas. Muitas são obrigadas a trabalhar como prostitutas, até mesmo figuras importantíssimas para o movimento LGBTQIAP+, como Marsha P. Johnson, que viveu e morreu nas ruas. Então, ter uma personagem como Sylvie é importantíssimo.

Como a própria personagem diz, ela merece sim viver sendo quem é, com respeito e dignidade. E por isso ela quer destruir a TVA: eles tiraram isso dela. Assim como a sociedade tira de milhares de pessoas trans e travestis.

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Sophia Di Martino como Sylvie na série

Loki e Sylvie: um caso de amor-próprio?

Voltando ao terceiro episódio, temos momentos importantíssimos envolvendo ambos personagens. A interação entre eles é bem desenvolvida, com intensos diálogos e o nascimento do vínculo que surge quando estamos em situações extremas. Ali, Loki vê em Sylvie uma igual, talvez até melhor. O que sempre escutou em vida é que morreria sozinho, abandonado, sem amor. Sua necessidade por atenção extrema, seus feitos para enganar os outros e se provar como superior teriam o colocado em uma situação em que ninguém iria gostar dele. Sabemos que não é verdade, pois, ao longo dos filmes do MCU, o deus da trapaça e do trovão finalmente se entendem. Thor ama genuinamente o irmão desde sempre, perdoando seus erros e, ainda que soubesse que Loki iria traí-lo, tem esperança de que não o faça.

Só que o Loki que temos na série é um Loki que não passou por todos os perrengues dos filmes, logo, não percebeu o amor do irmão, nem recebeu o seu perdão. Para ele, vai viver e morrer sozinho. Vestido com a capa da superioridade, sempre se lança em tentativas de humilhar as pessoas ao seu redor e, a princípio, Loki trata Sylvie dessa maneira, embora claramente esteja curioso sobre ela. Como a pessoa inteligente, desconfiada e esperta que é, a Variante não cai nos truques do deus da trapaça, assim como ele não cai nos dela.

Então, temos o momento em que Loki não só a elogia, como percebe em si as mesmas qualidades: determinação, inteligência, engenhosidade, força… E, pela primeira vez em sua vida, Loki não vai morrer sozinho, ele está com alguém e essa pessoa é especial. Só esse fato causa uma variação da linha do tempo, o que acusa a presença das Variantes naquele apocalipse e são “resgatados”. Novamente, Mobius faz Loki confrontar diversas verdades e uma delas é: ele se apaixonou por Sylvie.

Agora, Sylvie tecnicamente é Loki, certo? O fato de ele se apaixonar por ela fez com que tanto Mobius quanto o público se perguntasse: isso é amor-próprio ou é algo mais? Faz parte do narcisismo dele amar o seu espectro, uma “cópia” sua? Ou ele enxerga Sylvie como outra pessoa e não a si?

Na minha humilde concepção, é amor-próprio. Vou contar uma rápida história para vocês para contextualizar melhor.

Narciso era filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Como de costume na época, a mãe perguntou a um adivinho se ele viveria muito tempo, pois era uma criança de beleza estonteante, ao que este respondeu que sim, desde que não se conhecesse, pois se isso acontecesse, uma maldição recairia sobre Narciso e causaria sua morte.

O jovem cresceu e se tornou caçador. Sua beleza atraía olhares por onde ia. Recebia diversos elogios desde sempre, com bajulações eternas à sua pessoa por conta da sua aparência física. Entretanto, não havia encontrado alguém que fosse à sua altura, que merecesse o seu amor e sua atenção. Foi então que uma ninfa chamada Eco se apaixonou perdidamente por ele, que obviamente a rejeitou. Machucada pelos seus sentimentos por Narciso, foi até Nêmesis, a deusa da vingança, e pediu para que a seguinte maldição fosse lançada nele: “Que Narciso se apaixone com muita intensidade, mas não consiga possuir a sua amada”. Acho que ninguém esperava que ele fosse se apaixonar intensamente pela própria imagem.

Um dia, Eco o atraiu até uma fonte, tão límpida que refletia tal qual um espelho, fazendo com que Narciso se visse pela primeira vez e se apaixonasse perdidamente pela visão de si mesmo. O mito tem dois desfechos. Um deles, conta que o jovem morreu de frustração ao não conseguir alcançar o seu reflexo – assim como ditava a maldição, e o outro é o mais comum: Narciso jogou-se em seus próprios braços, ou seja, foi abraçar a água e morreu afogado.

Até onde sabemos sobre Loki, quando conversa com Sylvie, o amor para ele é como uma adaga, um objeto que constantemente utiliza para apunhalar as pessoas pelas costas. Mas, quando ele está prestes a morrer com Sylvie, Loki finalmente admite que existe alguém digno desse sentimento, que não irá traí-lo: ele mesmo. No caso, ela.

O que esperar do personagem agora?

O quarto episódio terminou de maneira surpreendente, com novas descobertas e também novos mistérios. Em que lugar Loki foi parar? Mobius também está lá? Quantas Variantes dele mesmo terão naquele local? E qual a verdade sobre os Guardiões do Tempo? Por que manter a tal linha sagrada se eles não são reais, teoricamente?! Só na próxima quarta, dia 07/07 iremos descobrir um pouco mais. Enquanto isso, deixa aí nos comentários se concorda com o que foi dito sobre o personagem. Tem a sua própria teoria ou interpretação? Manda pra gente! Queremos saber.