Duas situações.
A primeira acontece em 2014, nas aulas de Literatura Portuguesa 3. Minha professora sempre reforçava que não devemos, de forma alguma, avaliar um texto a partir da vida do seu autor. No momento em que o romance/poema/conto ganha o mundo, ele se desprende de quem o fez e precisamos compreendê-lo pelo que, de fato, é. Texto pelo texto. Apesar da explicação da minha professora e do seu reforço, eu e minha dupla não conseguimos fazer nosso seminário de Florbela Espanca totalmente desprendido da história da poetisa. Não tiramos uma nota ruim, mas levamos um puxão de orelha durante a apresentação.
O segundo caso aconteceu em novembro de 2021, quando Taylor Swift lançou o aguardado Red (Taylor’s Version). Para quem não acompanha a carreira da loirinha e precisa se situar, até seu álbum Lover, as gravações dos seis primeiros trabalhos de Taylor pertenciam à empresa Big Machine, que foi vendida ao empresário Scooter Braun. Taylor, por sua vez, em nada participou das transações, mesmo demonstrando interesse em adquirir o seu catálogo — ao invés disso, foi excluída da compra e amargou ao ver todo o seu trabalho nas mãos de uma pessoa que não viu lá muito problema em contribuir com aquela réplica de cera da cantora, completamente nua, no clipe de Kanye West.
Scooter é um nome de peso na indústria fonográfica americana, sendo responsável por artistas do calibre de Justin Bieber e Ariana Grande. Porém, Taylor Swift também é alguém cuja carreira é bastante consistente, e a divergência entre os dois, culminando com os direitos da artista sobre sua obra sendo retirados, gerou bastante ruído no cenário musical. Taylor chegou a afirmar que foi proibida de cantar as suas músicas antigas na TV e revelou a condição bastante complexa que impuseram para que a cantora pudesse ter domínio sobre seu próprio trabalho: regravar tudo o que produziu até então (e aqui me permito fazer um parêntese: se até a Taylor Swift, que é a Taylor Swift, está sujeita a uma passada de perna como essa, quem dirá nós, formiguinhas do mundo comum?).
E aí, chegamos na situação de novembro de 2021 que mencionei. Taylor aceitou a condição e, contando com uma base muito sólida de fãs (me incluo aqui) e com jogadas de mestre, iniciou um processo de regravação do seu catálogo. Ela se mantém fiel às gravações originais, embora atualize uma ou outra coisa, melhorando a sonoridade e convidando nomes de sua confiança para esta releitura, e ainda traz novos conteúdos, músicas conhecidas por “From the Vault“. O trabalho, assim, não permanece apenas como uma repaginada daquilo que sua comunidade já conhece, mas também uma renovação, uma oportunidade de nos aprofundarmos mais no processo criativo de uma artista que apenas evoluiu durante mais de quinze anos de carreira.
Mas nem só de benesses e consolidações vem essa nova fase de Taylor Swift, que a sagra como uma das artistas femininas mais influentes do cenário musical. Conhecida desde sempre como uma moça que “namorou demais”, revisitar suas antigas canções e trazê-las ao público mais uma vez abre margem para que o público puxe histórias passadas de seus antigos relacionamentos. Por várias vezes, Swift se defendeu falando que tais alegações não faziam sentido: um de seus melhores amigos, Ed Sheeran, usa relacionamentos passados para as composições, por que ela não pode usar as próprias experiências como base para as suas?
Com a nova fase do seu trabalho Red (Taylor’s Version), esse fantasma retorna. Na semana do lançamento do álbum e do clipe/curta metragem da música “All Too Well (10 Minute Version) (Taylor’s Version)”, a mídia reviveu seu breve relacionamento com o ator Jake Gyllenhaal, creditado como a inspiração para a triste canção de Swift. E não apenas isso: de repente, voltaram a perguntar sobre quem Taylor Swift está falando nesta música? E nesta? E nesta?
Recorro aqui ao excelente artigo publicado pela Vogue e traduzido pela equipe do TSBR:
“Afinal de contas, só agora Swift está recuperando esse controle em suas músicas — depois do material ter sido vendido para a empresa de Scooter Braun; que tipo de mensagem estamos passando quando focamos totalmente nos homens de “Red” ao invés de apreciar o álbum pelo que ele é? Se a música de Swift pode ajudar fãs a processar seus próprios relacionamentos antigos que deram errado, ótimo, mas nós precisamos mesmo escolher lados num término de celebridades que aconteceu há mais de uma década?”
Novamente, retorno à primeira situação que citei logo no início deste texto, eu e meu seminário sobre Florbela Espanca. O que sabemos da vida de Florbela é que a poetisa não teve uma das histórias mais gratas, colecionando algumas desavenças no amor, traumas familiares, uma saúde mental fragilizada. Podemos apenas inferir que Florbela deixava sua história vir à tona nos seus textos, poemas repletos de amor, de tristeza, de sentimentos conturbados sobre a morte, mas, no geral, universais. Quando Florbela entregou seus escritos a um editor, suas palavras deixaram de ser dela — passaram a ser nossas, seus leitores. E não podemos analisá-las a partir da vida da poetisa. Além do mais, quantos saberão tão intimamente o que aconteceu na vida da escritora portuguesa? Nem seus biógrafos, arrisco a dizer, conhecerão com profundidade todo funcionamento complexo de uma pessoa, mais ainda de uma artista sensível quanto Florbela Espanca.
“Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera,… quebra-me o encanto!“
Poema À Morte, de Florbela Espanca. Um dos meus favoritos.
E aqui eu lanço a minha questão: se Taylor virasse uma disciplina da faculdade, um texto para interpretarmos, desvendarmos, não analisaríamos à luz da sua vida. A própria já disse algumas vezes que usa de várias histórias para construir suas composições. O álbum folklore foi resultado desse olhar mais atento às realidades diversas que fomentam os nossos arredores, que estão no nosso cotidiano e que precisam dessa atenção cuidadosa para serem percebidas. Mas no fim, quando o texto chega aos nossos olhos e ouvidos, a origem da inspiração não importa. O que vale mesmo é nossa reação e nossa interação àquele produto, experiência essa que é particular e muda de indivíduo para indivíduo. A maneira como consumo Begin Again com certeza não será a mesma que a sua. Os sentimentos evocados pelo texto, por outro lado, são universais e permitem que sigamos nos conectando com as músicas, regravadas ou não.
Taylor Swift é uma artista que, apesar de todo o seu gabarito e da sua constante luta para readquirir os direitos sobre o próprio trabalho, constantemente segue sendo descreditada. Na época do lançamento de Reputation, em 2017, pouco após da longa divergência com o casal Kardashian/West, me deparei com tweets criticando Taylor por ter criado músicas que falavam sobre como toda aquela situação a afetava. “Que egocêntrica”, cheguei a ler. Já mais recentemente, Damon Albarn, vocalista do Blur e idealizador do Gorillaz, alegou erroneamente que Swift não era a compositora das suas próprias canções — algo que ela rebateu com veemência. No fundo, não é sobre o trabalho de Taylor, mas sobre ela. E sobre quem consome. Mas o que importa, o que realmente importa, é que não faz diferença alguma saber de onde Swift tira inspiração para escrever suas composições. No fim do dia, quando damos play para escutá-la, estabelecemos o diálogo com a cantora. E toda essa discussão acaba.
Que, no futuro, possamos apreciar os trabalhos pelo que são e, principalmente, respeitando suas realizadoras.
(Obs: tá liberado não gostar da Taylor também, viu? O que não tá é desrespeitar a artista!)