Acorda, Carlo! é uma animação disponível na Netflix, produzida pelo Copa Studio e idealizada por Juliano Enrico, respectivamente, o mesmo estúdio e mesmo criador de Irmão do Jorel. A parceria com o pessoal da TV Quase na equipe de roteiristas e de voz original também se repete, então, se você é fã do desenho exibido pela Cartoon Network, não pode deixar de conferir!
A história gira em torno de Carlo, um menino de 7 anos que sempre usa pijamas e que, após ter passado 22 anos adormecido durante um jogo de pique-esconde, acorda em uma realidade totalmente diferente. Se antes vivia na Ilha da diversão sem motivo – cheia de filhotes de idosos e de monstros, que ficavam sob os cuidados da montanha Solange, a qual distribuia biscoito Goiabitos para todos após as brincadeiras –, Carlo desperta em um mundo mais sério, no qual seus amigos, agora adultos, não lembram do tempo em que foram crianças, já que são obrigados a dar suas memórias ao Rei Blaus. E pior, os Biscoitos Goiabitos não são mais fabricados.
Começamos acompanhando o simples funcionamento da Ilha da diversão sem motivo, onde Carlo e o bebê monstro Alberto, que parece um Grinch, são melhores amigos que fazem de tudo para ganhar as brincadeiras inventadas por Solange, para que possam receber a grande recompensa: um pacote de Goiabitos fechado com um prendedor, algo que remete bastante às dispensas brasileiras. Até que, durante um pique-esconde, Carlo adormece, escondido em uma floresta proibida, e Alberto, que estava à sua procura, sofre um acidente e acorda 22 anos mais velho, como um homem monstro que precisa controlar a monstruosidade para exercer seu ofício de burocrata-apagador-de-lembranças. É por meio dele, e não do protagonista que dá nome à série, que somos levados de supetão a um outro tempo. Ainda no primeiro episódio, Alberto é lançado sem querer em um lixão de memórias esquecidas, onde encontra a marrenta Tatiana, uma pomba que não voa e que reivindica a posse das lembranças jogadas ali. Ela trata Carlo como sua relíquia mais preciosa e, quando o menino acorda, os três – Carlo, Alberto e Tatiana – começam uma aventura pela Ilha, questionando, quase que acidentalmente, o domínio do Rei Blaus, um elefante branco que domina as redes sociais e todo o funcionamento do local. Ou é levado a acreditar que domina.
Como a apresentação da Ilha da Diversão sem motivo ocupa apenas o início do primeiro episódio e o corte para o futuro é repentino, ficamos nos perguntando o que houve com Carlo e do que se trata a realidade comandada pela Montanha Solange. Será que, apesar do título do desenho, quem dorme e acorda na verdade é Alberto, que encontra Carlo em seus sonhos? Ou será que a vida real de Alberto é o sonho de Carlo? Possibilidades lançadas que até são interpretações válidas, mas, depois de assistir à temporada inteira, podemos elaborar ainda outras teorias.
O fato é que, seja lá qual for a realidade oficial de tudo, todas essas possibilidades trazem consigo a maluquice dos sonhos. Se não me engano, foi o autor Julio Cortázar quem afirmou que a primeira ideia de uma história, antes de lapidada, pode parecer alguém contando um sonho estranho, cuja sensação só vai fazer sentido para aquele que sonhou. Em Acorda, Carlo! esse caráter onírico permanece e é muito forte, não necessariamente por falta de amadurecimento na história. Sentimos, em todas as escolhas criativas da obra, que houve a intenção manter um tom de devaneio, de fantasia infantil, de lembrança, de esquecimento, e até de pesadelo.
Sabe aqueles memes sobre sonhos muitíssimos aleatórios que supostamente têm significado? Aqui eles têm mesmo. Mas antes de chegar no sentido de tudo, a animação brinca com essa aleatoriedade, que está presente em todos os seus elementos: nas cores vibrantes, na trama, nas piadas, no design de cenários e de personagens, que não são nem apenas um conjunto de bichos, nem de gnomos, nem de idosos (alguns deles, inclusive, lembram a vovó Juju, cuja voz, incrivelmente feita por Melissa Garcia, também aparece na boca de outros personagens do mundo de Carlo). A verdade é que a animação é composta por uma mistura de personagens de várias espécies, com diferentes cores, sons e sotaques.
A combinação desses elementos lembra bastante séries como Chowder, Apenas um show e principalmente Flapjack, que, pelo menos na minha percepção, deve ser uma referência direta para o traço característico nas animações do Copa Studio, que também está presente nessa nova animação. Isto pode ser percebido nos designs esquisitões, nos super closes mostrando detalhes realistas e defeitos dos personagens (que também são uma marca em Irmão do Jorel), além do uso de diferentes técnicas e estilos de animação.
A diferença é que essas referências, embora também apresentem um universo maluco, uma vez que este é estabelecido, tudo costuma se manter dentro de uma lógica, com algumas surpresas aqui e ali. Por exemplo, a partir do segundo episódio, Flapjack não nos surpreende mais com o fato do protagonista morar em uma baleia chamada Bolha, e por mais que ele vivencie loucas aventuras marítimas com Capitão Falange, sempre retornam para o pequeno vilarejo chamado Porto Tempestade. Há uma premissa geral sobre se aventurar em busca de uma Ilha Doce, mas isto muitas vezes nem influencia o arco de um capítulo. O aspecto episódico da série é tão forte que, ao final, não houve a preocupação em resolver questões anteriores. Flapjack e Falange sequer encontram a Ilha Doce. Eles apenas se tornam humanos como nós e, por isso, são expulsos de Porto Tempestade. Junto com Bolha, vão atrás de outros portos pelo mar, o que surpreendeu a todos como um final que nem parecia um final até a última cena. E como esquecer esse final maluco.
Voltando a Acorda, Carlo! e suas possíveis referências, podemos dizer que, em relação ao desenrolar da história, ela se assemelha mais ao da minissérie O segredo além do jardim, em que cada capítulo tem um arco próprio, mas cada um se liga a um fio que está ligado a um arco maior.
Carlo e seus amigos vão, pouco a pouco, desfazendo os nós da trama e, assim, nós vamos entendendo o que ocorreu com a realidade soterrada ao longo do sono do menino. São revelados personagens junto com memórias esquecidas, que nos dão a sensação de que “tem algo mais aí”. Descobertas e flashbacks da história pregressa oferecem pistas, com as quais eles podem seguir adiante. Então, tal como no final de cada capítulo em O segredo além do jardim, em que Gregory e Wirt seguem em frente na trilha a fim de voltar para casa, Carlo adormece antes dos créditos de cada episódio e acorda no seguinte, para viver mais aventuras.
Mas, enquanto a produção estadunidense segue um caminho mais pé no chão e regular, a série brasileira não se prende a um encadeamento de causa e consequência tradicional, transformando tudo o que pode em material para um humor cínico em relação a nossa sociedade, muito engraçado por sinal. Muitas vezes Carlo, Tatiana e Alberto desviam bastante do que pode levá-los a solucionar os mistérios, e eles mesmos se perguntam, em meio a tantos novos objetivos, o que eles realmente devem fazer para seguir adiante, talvez até para situar o espectador. Surgem diferentes antagonistas, segredos, backstories e, tal hora, muita coisa acontece ao mesmo tempo. De repente, no meio dessa confusão deliberada, alguma maluquice nos faz soltar uma bela gargalhada que nos traz de volta à história. E essa surpresa, essa expectativa quebrada pelo humor ocorre por conta de um diálogo, pela entonação dada à fala de um personagem, por um figurante com design maluco, pela música, pela referência a um meme, ou por algum detalhe tão comum ao nosso cotidiano que não costumamos reparar.
Ao longo das aventuras de Carlo também podemos notar a sátira política, seja no muro amarelo que derruba a floresta para erguer um shopping, seja pelos negacionistas que afirmam que a Ilha plana é redonda, seja pela presença das novas formas de mídia que estão sempre ao alcance da mão, que aceleram nossas vidas e influenciam nossos comportamentos, das escolhas mais simples até aquelas com sérias implicações políticas. E o que chama atenção é a forma com que os criadores do desenho diversas vezes falam de si: os artistas, precarizados, desvalorizados e que também não deixam de ser zoados, pois conseguem ser uma galera chata pra caramba.
Para mim, o maior de todos os pontos positivos foi a trilha sonora. Em cada episódio, há uma apresentação musical com canções originais, que prestam homenagens a ritmos brasileiros, como axé, forró, rap, funk, pop rock nacional, etc. Uma das músicas mais chiclete é o jingle do Rei Blaus (me flagrei cantando várias vezes: eu adoro o Blaus, ele é o melhor rei que eu já vi…). Ao final de um episódio, ao longo do qual se repete o jingle de Blaus, podemos ouvir, nos créditos, o clássico da MPB Na sombra de uma árvore, música composta e interpretada pelo cantor brasileiro Hyldon, e entendemos de onde vem a inspiração para o jingle do vilão. Outro momento marcante é quando os personagens estão prestes a ser engolidos por uma névoa maléfica e, para acalmar Alberto, Carlo afirma a ele que “tudo passa”. Esse dramático momento de fuga é embalado pelo brega Tudo passa, de Nelson Ned, e é provável que você cante junto, assim como eu.
Eu poderia escrever muito mais sobre cada detalhe, como o estilo de animação nas lutas da Coelha Matilde, que se parecem com animes dos anos de 1990, ou sobre os diferentes estilos de animação nas aberturas dos episódios, mas vou pular e falar sobre o misterioso final, senão este texto não teria um fim. Imaginei que o último capítulo de Acorda, Carlo! seria mais parecido com o de O segredo além do jardim, pelo que a história e o título da série indicavam. Porém, o caminho que se abre no final nos mostra que, se aprovada, haverá uma nova temporada, cujas histórias devem ocorrer em outra ilha cósmica, em que Carlo poderá buscar aquilo que perdeu no último episódio dessa primeira temporada.
Pois que venham mais temporadas e que o sucesso de Acorda, Carlo! abra portas para outras animações brasileiras mais maduras, que ousam conquistar não somente o público infantil.