O documentário A Vizinha Perfeita (The Perfect Neighbor), lançado pela Netflix em 2025 e dirigido por Geeta Gandbhir, revisita uma tragédia recente que reacende o debate sobre as leis de autodefesa na Flórida e a persistência do racismo estrutural nos Estados Unidos. Com uma montagem feita quase inteiramente a partir de imagens reais — câmeras corporais da polícia, vídeos de segurança e gravações de celulares —, o filme reconstrói os eventos que culminaram no assassinato de Ajike Owens, uma mãe negra morta a tiros pela vizinha branca Susan Lorincz em 2023. Leia a nossa crítica:
A Vizinha Perfeita
Um retrato documental a partir da própria lei
Desde os minutos iniciais, A Vizinha Perfeita alerta o público sobre o material que está prestes a exibir: cenas reais de intervenções policiais ao longo de dois anos, captadas em Ocala, na Flórida. O primeiro registro mostra o momento em que a polícia é acionada para atender a uma ocorrência de disparo de arma de fogo. O que se segue é uma sucessão de registros anteriores, revelando uma tensão crescente entre Lorincz e seus vizinhos.
O documentário revela que a mulher chamava a polícia repetidas vezes para reclamar de crianças que brincavam em um terreno vazio ao lado de sua casa — um espaço que nem mesmo lhe pertencia. A insistência nos telefonemas, as ofensas racistas e o incômodo com a presença de famílias negras no bairro delineiam um retrato claro de intolerância. Gandbhir utiliza essas gravações para criar um olhar observacional, sem narração ou entrevistas tradicionais, permitindo que o público enxergue a escalada do conflito pela ótica das câmeras e da lei.
Da denúncia cotidiana à tragédia anunciada
As imagens mostram a rotina policial de atender chamadas cada vez mais infundadas, em que Lorincz se apresenta como uma vítima constante. As autoridades tentam apaziguar as situações, mas o impasse se repete: uma mulher branca alega se sentir ameaçada por crianças negras brincando. Essa dinâmica se repete até o dia em que, após uma nova discussão, Ajike Owens bate à porta da vizinha e é baleada através da madeira.
O impacto das imagens posteriores é imediato. Os filhos de Owens aparecem pedindo ajuda, enquanto os policiais e vizinhos tentam socorrê-la. A cena é o ápice de uma tragédia que o filme prepara cuidadosamente, revelando como pequenas omissões e uma legislação ambígua — as chamadas leis de “Stand Your Ground” — podem legitimar atos de violência motivados por preconceito.
A crítica à lei e ao sistema que a sustenta
Gandbhir estrutura A Vizinha Perfeita como uma denúncia da própria base jurídica que permite a distorção do conceito de legítima defesa. Inspirada em casos como o de Trayvon Martin, assassinado em 2012, a diretora questiona até que ponto a lei de autodefesa protege realmente a vida ou apenas reforça privilégios raciais e armamentistas.
Quando Susan Lorincz é finalmente interrogada e depois presa, o documentário confronta o espectador com a sensação de que a tragédia poderia ter sido evitada. As falhas institucionais, o descaso diante de sinais evidentes de racismo e a confiança excessiva na narrativa da “vizinha perfeita” transformam o caso em um espelho das contradições americanas.
Crítica: Vale à pena assistir A Vizinha Perfeita na Netflix?
Um filme sobre dor, impotência e repetição
Mais do que reconstituir um crime, A Vizinha Perfeita expõe um ciclo que parece interminável: o de famílias negras devastadas pela violência armada e por sistemas que pouco as protegem. Ao final, a diretora inclui cenas de protestos, do funeral de Ajike e da condenação de Lorincz a 25 anos de prisão. Há justiça, mas nenhuma sensação de reparação.
A força do documentário está na forma como transforma imagens burocráticas — relatórios policiais e gravações de rotina — em um retrato humano e social de uma nação que continua falhando com seus cidadãos mais vulneráveis. Gandbhir não oferece respostas, mas deixa uma pergunta que ecoa muito além da tela: por quanto tempo ainda será preciso registrar tragédias como essa antes que algo mude?