Quando estava na segunda série do ensino médio, na aula sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, lembro do professor de Literatura dizer que o amor proibido de Riobaldo por Diadorim, no fundo, estava certo, porque sempre foi o amor entre um homem e uma mulher. Hoje em dia, essa afirmação já é bem questionada e A palavra que resta, de Stênio Gardel, por sua vez, não procura fugir da certeza de que é, sim, uma história de amor entre dois homens no semiárido sertanejo, onde esse tipo de relação deve ser silenciada, nem que seja à força.
A trama de A palavra que resta gira em torno de Raimundo Gaudêncio, um idoso de 71 anos que carregou uma carta sua vida inteira, desde quando Cícero, seu grande amor na juventude, entregou a ele. O menino lhe dá a carta, mesmo sabendo que Gaudêncio não sabia ler, no momento em que suas famílias descobrem o relacionamento e tentam separá-los. Então Raimundo é levado a fugir do ambiente hostil que se torna sua casa, mas carrega essa separação violenta por muitos anos e, com ela, a ideia de que seu sentimento é errado. Passou a vida se passando por “macho”, trabalhando com carga de caminhão e amando homens na surdina, permanecendo incapaz de entender a carta de Cícero, sem deixar que ninguém decifrasse para ele. É a amiga Suzzanný que o incentiva a frequentar o curso de alfabetização para adultos e, junto com a coragem para aprender a ler, surge a possibilidade de se reconciliar consigo e com seu passado que, às vezes, vem como ondas e, em outras, como avalanche.
O livro, lançado em abril deste ano pela Companhia das Letras foi escrito por um confesso admirador de William Faulkner, um dos pioneiros a usar a técnica do fluxo de consciência. Mas Gardel também conhece bem a literatura do seu tempo e, mesmo que esse estilo de narração não seja mais tão comum nas obras contemporâneas, é com ele que escolhe contar sua história. Não faz essa escolha à toa, pois tudo o que relata é um conjunto de lembranças, uma memória que transborda. Assim, a narrativa não é linear: brinca com tempo e espaço, circula entre passado e presente.
A forma com que a história é narrada não é unânime entre os leitores, mas Stênio assume o risco até na hora de pontuar. Não começa suas frases com letra maiúscula e os finais não terminam com ponto. Ao mesmo tempo que busca a fluidez do pensamento, a escrita também provoca certos estranhamentos por se distanciar do convencional. Mas quem disse que literatura tinha que ser fácil? Bem, esse é um dos casos, e as 150 páginas enganam, pois a recompensa não vem rápido, nem de graça. É difícil dizer que algo totalmente novo está sendo criado, mas o lirismo com que Gardel narra tem uma marca especial, embora respeitoso a estes que vieram antes, inclusive às prosas poéticas mais atuais, como as de Valter Hugo Mãe e Mia Couto, já mostrando maturidade suficiente para criar uma voz própria.
Algo que me chamou atenção e que reforça essa impressão de originalidade é que Stênio não pretende, pelo menos não intencionalmente, continuar a tradição de uma literatura sertaneja. Pelo que ouvi falar, os modernistas da década de 1930 não são inspirações tão fortes para ele como são, por exemplo, para Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado. Se sua história acontece no sertão é porque usa de sua aldeia para falar do mundo.
Enfim, A palavra que resta é uma narrativa de resistência, necessária e delicada. Mas, por vezes, é também agressiva, principalmente em relação à vivência de Suzzanný, que é agredida por Raimundo e ele, na sua ignorância, insiste em desrespeitar sua identidade e a chama pelo nome que ela não escolheu ter, mesmo quando já são amigos. E para quem não gosta de finais abertos, é bom estar preparado para a trapaça de Gardel. Melhor não entregar mais nada, mas posso dizer que a carta de Cícero, que esperamos ansiosamente para ler por estar presente em todo o romance, fala de uma realidade que é muito viva, ainda que exista apenas na memória de Raimundo.
“(…) mesmo depois de velho parece que a gente não deixa de querer, o bom da vida é teimar,”