Nos últimos anos, temos tido uma cansativa leva de filmes e séries que se focam exclusivamente na cultura eurocêntrica, branca, cis, hétero e, principalmente, masculina, reiterando o sistema patriarcal em que somos inseridos. Temos a rodo histórias sobre vikings, Era Vitoriana, 2ª Guerra Mundial, filmes de “época”, entre outros. É quase um ciclo sem fim. Por sorte, temos diretoras como Gina Prince-Bythewood e atrizes incríveis como Viola Davis para mostrarem ao mundo que, com A Mulher Rei, uma narrativa centrada em uma nação do continente Africano, dirigido, protagonizado e com um elenco inteiramente preto funciona. E ah, como funciona!
A Mulher Rei foi “baseado em fatos reais”, em figuras que existiram de verdade, mas, claro, com toda a licença poética possível, trazendo luz a um grupo de guerreiras que foram extremamente temidas e até hoje os franceses tremem ao ouvir seu nome.
Os fatos sobre o reino de Daomé e as Agojie
Daomé foi um reino africano fundado no início do século XVII. Era uma simples cidade, até que, no século seguinte, os sucessores do trono resolveram ampliar esse território, de forma que até mesmo Ouidah, um importante centro de tráfico humano, foi adicionado às suas terras. Com isso, o reino de Daomé se tornou parte desse tráfico, no qual o fato de estar em expansão ajudava muito o seu comércio, pois tinha sempre os derrotados de outros povos para vender. Curiosamente, foi do porto da cidade de Ouidah de onde saíram a maior parte das pessoas escravizadas que vieram para o Brasil.
Além do poder financeiro que obteve, o reino de Daomé também possuía um exército poderoso, composto somente por mulheres, as Agojie, que eram 1/3 do exército completo. Em fato, elas são as únicas amazonas documentadas na História, até onde se sabe, pois as gregas são apenas mito.
“As mulheres soldados e oficiais do exército de Daomé possuíam escravas, moravam no palácio do rei e eram tão respeitadas e poderosas que, quando andavam pelas ruas, os homens comuns deviam dar um passo atrás para abrir caminho e olhar para o outro lado: não podiam dirigir seu olhar a elas. Usavam uniformes, carregavam bandeiras e cantavam hinos.” (Fonte: Amazonas de Daomé: As mulheres mais temidas do mundo (geledes.org.br)
Não há exatamente um consenso sobre o surgimento das Agojie, e as teorias se repartem entre as mulheres caçadoras de elefantes, que eram comuns nos séculos XVII e XVIII, e a ideia de que teriam nascido para se tornarem guardas do palácio – somente mulheres e eunucos eram permitidos a entrada. Também há quem diga que seja porque o reino de Daomé entrava em muitas guerras, causando, assim, o declínio da população masculina e obrigando o rei a treinar mulheres.
E o filme?
A história gira em torno das Agojie, focando principalmente na general Nanisca (Viola Davis), e em uma nova guerreira, a jovem Nawi (Thuso Mbedu), que faz parte de um novo grupo a ser treinado pela líder e outras mais experientes em campo, como a tenente Izogie (Lashana Lynch).
Pelo lado de Nanisca, vemos uma parte mais brutal, mais política, e até mesmo com uma carga de drama o suficiente para nos trazer lágrimas aos olhos, enquanto por Nawi somos levadas a encarar com otimismo o futuro, a perseverança, a força que uma mulher traz e pode fazer com que se torne muito mais feroz em batalha do que qualquer homem já foi.
A narrativa vai permear por esses caminhos tortuosos, costurando-os com agilidade e uma certa experiência. As personagens são poderosas, e mal consigo começar a descrever Viola Davis no seu papel de general comendo o rabo de geral – me perdoem o palavreado. Além das incríveis guerreiras, cujas cenas de luta são um pouco bagunçadas pelo efeito de câmera, mas lindamente coreografadas, temos a maravilhosa atuação de John Boyega como rei Ghezo, que trouxe ao governante uma certa arrogância palaciana, uma firmeza de postura, e fica difícil de não acreditar que ele faz parte da nobreza. Seu porte real é convincente.
Infelizmente, as paisagens locais não são muito utilizadas, e isso porque estamos falando de um reino costeiro da Nigéria, que hoje em dia se chama República do Benim, e que devem ser belíssimas. Mal conseguimos pôr nossos olhos nas belezas dos cenários, e há muitos ângulos fechados e intimistas ao longo do filme, que podem servir para mostrar a atuação magnífica de cada ator e atriz, mas que nos impede de apreciar um pouco mais algo que raramente as mídias nos mostram.
A mulher Rei traz algo que pode ser muito doloroso para mulheres e pessoas alinhadas ao feminino, pois mesmo sendo poderosas guerreiras, nenhuma daquelas mulheres teve uma vida fácil antes de se tornar quem é, e, como fala uma delas, ali ela é a caçadora e não a caça. Entretanto, também podemos nos regozijar com o fato das guerreiras Agojie serem extremamente poderosas, de como cuidam uma das outras como irmãs, abraçando até mesmo quem vem de fora, sendo fortes em diversos âmbitos de suas vidas. Suas narrativas são intensas e intimistas, nos ajudando a mergulhar ainda mais na trama.
A Mulher Rei é muito sobre a força da mulher negra, e como as suas narrativas são poderosas e deveriam ser ouvidas ao redor do mundo. Que mais produções como essa sejam feitas, pois deus sabe como esse povo precisa entender e normalizar algo que é… normal.