Se hoje conceitos como inteligência artificial, dispositivo inteligente e ciberespaço fazem parte do nosso cotidiano, a situação era bem diferente em 1982, quando Tron: Uma Odisseia Eletrônica chegou aos cinemas. Experimental, a produção da Disney fez história ao borrar fronteiras da imaginação e da tecnologia para fazer história em Hollywood e dar início a uma saga que retorna às telonas com Tron: Ares, um dos lançamentos mais aguardados de 2025.
O primeiro filme de Tron conta a história de Kevin Flynn (Jeff Bridges), programador de games que decide invadir os arquivos da empresa que o demitiu para provar a autoria de projetos que foram roubados por um ex-colega. Porém, ao tentar hackear a companhia, ele acaba literalmente transportado para dentro do sistema, onde precisa sobreviver a jogos mortais e unir forças com programas para lutar contra o Programa Master Control, uma IA maligna que domina o ambiente, chamado “Grade”.

Essa história é uma criação do animador Steven Lisberger, que ficou encantado com a ideia de unir modernidade e tradição. Ao jogar Pong, um dos primeiros videogames da Atari, o cineasta imaginou uma versão virtual das arenas de gladiadores antigas, como a da lenda de Espártaco, cuja história havia virado filme no épico Spartacus (1960). Para realizar em tela o mundo que recebe essas competições, o diretor e sua equipe fincaram um pé na informática disponível no mundo real e o outro na fantasia.
Enquanto a computação foi representada com o embasamento teórico da consultoria de Alan Kay, um dos pioneiros da área, os visuais ganharam vida nas artes conceituais do designer futurista Syd Mead e do renomado quadrinista francês Jean Giraud, o Moebius. Uma equipe cujo trabalho serviu para vislumbrar um espaço cibernético que sequer existia, afinal Tron chegou aos cinemas meses antes da estreia oficial da internet.
Lisberger acreditava que o único jeito de dar vida a esse conceito era misturando animação e live-action, o que tornou o projeto tão ambicioso quanto difícil vender para grandes estúdios. A única empresa que acreditou na proposta foi a Disney, que, segundo o ex-presidente Dick Cook, passava por um período de transição e precisava de algo novo e moderno para afastar a reputação de “ultrapassada”. O que ninguém sabia, é que Tron seria a vanguarda que mudaria tudo em Hollywood.
Como Tron se tornou um marco da computação gráfica no cinema
Fazendo jus à premissa de Tron, a produção recorreu à computação gráfica (CGI) para criar o visual da Grade. Apesar de não ser o primeiro filme a utilizar esse tipo de efeito especial, o longa foi pioneiro ao trazê-lo em grande escala, incluindo cenários, veículos e até em personagens, com o vilão Programa Master Control sendo considerado o primeiro personagem de computação gráfica dotado de atuação.
O CGI do longa foi produzido por quatro firmas de computação, dotadas de equipamentos e técnicas próprias, que deram à equipe o desafio de dominar uma tecnologia que dava os primeiros passos. Em entrevista para a edição especial de 20 anos do filme, o animador Bill Kroyer lembrou a dificuldade em traduzir as ideias do cinema para os programadores: “eles nunca haviam feito um filme e nós nunca havíamos usado computadores”.
Apesar de ser a mais alta tecnologia disponível na época, os computadores eram muito limitados. Em entrevista à Variety, o diretor Steven Lisberger afirma que “a forma como fizemos a computação gráfica é inconcebível para as pessoas hoje. Não havia movimento, computadores só conseguiam gerar quadros individuais. Não havia uma forma de colocá-los no filme digitalmente, então você colocava uma câmera em frente à tela do computador e filmava quadro a quadro”.
Todo esse processo complicado representa apenas uma parte do trabalho para dar uma aparência futurista à parte live-action de Tron. Para realizar esse mundo escuro iluminado apenas por neon, a produção utilizou uma técnica chamada backlit animation, em que os atores foram filmados em figurinos e cenários completamente preto e branco. Um processo trouxe um desafio extra aos intérpretes, que precisavam imaginar tudo o que havia em volta.
Intérprete de Tron, o programa guerreiro que ajuda o humano Kevin Flynn em sua jornada, o ator Bruce Boxleitner comparou a experiência ao teatro: “Muitas peças que fiz não tinham cenários, era muito parecido com Tron, e você criava o mundo para a plateia. Tivemos que fazer isso para nós mesmos com imaginação”, disse ao documentário comemorativo de duas décadas do longa.
Após as gravações, cada quadro do filme foi separado em camadas que ganharam tratamento isolado, momento em que receberam cores, objetos criados por computador e tudo mais. Um processo trabalhoso cujo resultado aproximou os realizadores ao personagem principal da história. Nas palavras de Bill Kroyer:
“A ideia de Flynn ir para esse novo mundo e fazer todas essas descobertas foi uma metáfora para o que fizemos, enquanto trabalhadores. (…) Foi um privilégio raro e empolgante trabalhar em um campo em que todos os dias você percebe que pode fazer algo que ninguém fez antes. Poucos artistas têm essa chance, e essa é uma das melhores coisas em trabalhar com computação gráfica desde então.”
O legado vivo de Tron
O trabalho duro que colocou Tron na vanguarda do uso de computação gráfica em Hollywood não se traduziu em um sucesso imediato. Apesar da arrecadação de US$ 50 milhões nos EUA, que o tornou dono da maior bilheteria de um live-action da Disney por cinco anos, o longa não se tornou febre entre o público e teve dificuldade de se colocar na indústria, ao ponto de ser esnobado na categoria de Melhores Efeitos Visuais no Oscar de 1983: “A Academia achou que trapaceamos ao usar computadores”, disse Steve Lisberger anos depois ao SFGate.
Por outro lado, a própria indústria tornou o legado do filme inegável. O uso de computação gráfica foi cada vez mais abraçado por cineastas como John Lasseter, ex-diretor de criação da Pixar, que teve o primeiro contato com animação computadorizada através do longa e declarou que “sem Tron, não haveria Toy Story”. Assim como provavelmente não haveria o Gollum de Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001) ou os Na’Vi de Avatar (2009), ambos premiados no Oscar por seus efeitos visuais.
A herança da produção também se manteve viva dentro da própria franquia. Além de inspirar videogames lucrativos e premiados, Tron ganhou um novo capítulo nas telonas em 2010 com Tron: O Legado, que não só repaginou o mundo pulsante e neon da Grade com uma computação gráfica de ponta, como ainda se antecipou à moda das “sequências legado”, que são continuação e reboot ao mesmo tempo, tão comuns atualmente.
E, justamente por isso, Tron: Ares é um dos filmes mais aguardados de 2025. O longa de Joachim Rønning (Malévola: Dona do Mal) terá o retorno de Jeff Bridges e acompanhará Ares, programa da Grade interpretado por Jared Leto (Blade Runner 2049), enviado para cumprir uma missão no mundo real. Resta saber como o terceiro capítulo da saga levará adiante a herança de uma odisseia eletrônica que nasceu se antecipando à realidade tecnológica que vivemos mais de quarenta anos depois.