a fera thriller idris elba a fera thriller idris elba

A Fera e o eco-horror no cinema

De acordo com Rust e Soles (2014, p. 510), o termo eco-horror (do inglês, ecohorror) está em uso, pelo menos, desde os anos 1990, e se refere a obras literárias e cinematográficas em que as personagens humanas são atacadas por forças naturais tipicamente animais e plantas que têm sido alteradas ou destruídas por humanos em algum sentido. Ou seja, o revide da natureza que vitima seres humanos, como castigo pela perturbação ambiental, como uma micro ou macro vingança de Aia no universo ficcional da obra.  Mas se o termo só se popularizou no final do século passado, o eco-horror pode ser considerado quase tão antigo quanto a história do cinema. Alguns apontam o Godzilla (1954) como primeiro filme do gênero, mas o seu rival King Kong, por exemplo, já estava brigando contra os humanos desde 1933.

Todos os dias ocorrem no nosso mundo acontecimentos horríveis e parece natural que eles sejam assimilados pelo nosso imaginário coletivo por meio da literatura, do cinema e de outras formas de arte. Nesta dinâmica, o horror é um gênero capaz de expressar nossos temores, a partir da criação de metáforas fantásticas e monstruosas. Se um dia elas fizeram referência a ataques nucleares, consequências da radiação ou o temor da Guerra Fria, hoje nos parece mais terrível as alterações climáticas globais, o uso de agrotóxicos, a poluição e devastação do planeta, a sexta extinção e a injustiça ambiental que os alertam  para as mudanças na vida na Terra como a conhecemos. A intenção de um filme de suspense ou horror, como A Fera, é nos causar uma certa agonia ao nos imaginar na situação dos personagens. Mas também é fácil ficar assustado quando as obras de Eco-horror jogam na nossa cara os terrores que a humanidade causou sobre nosso planeta ao longo dos últimos dois séculos.

Dizer que dentre tantas obras que mostram ataques de aranhas, abelhas, crocodilos gigantes, piranhas e sharknados, todas querem entregar uma crítica social foda é um pouco puxado.  Muitos deles almejam apenas o puro entretenimento e, às vezes, o filme sobre ataque-de-bicho-gigante é tão previsível que já sacamos qual personagem vai morrer e em que altura determinada situação irá acontecer, além de outros elementos que as paródias desse gênero deixam ainda mais explícitas. Mas vamos começar quando as coisas não eram tão fáceis de adivinhar, talvez pelo filme que criou esse tipo de enredo.

Tubarão

Particularmente, acho datado e não muito divertido. Já ouvi dizer que foi uma tentativa de fazer um eco-horror consciente, mas, para mim, isso é desmentido nos primeiros quatro minutos do filme, quando o Tubarão é o primeiro a atacar uma banhista sem nenhum motivo. O próprio autor do livro que inspira a história do filme, Peter Benchley, falava que a fera aquática nas telas não condizia com a realidade, pois era inteligente e vingativa demais em relação aos humanos. O terror dos ataques do animal foi amplificado e espetacularizado no cinema, enquanto que, no livro, sua real intenção era mostrar como uma comunidade reagiria a uma ameaça desconhecida — os pescadores que o subestimam, o policial que não tem permissão para divulgar a informação dos ataques para não espalhar pânico e o prefeito que não quer as praias interditadas para que a economia local continue a todo vapor. Dá até para fazer um paralelo com o comportamento de certos líderes políticos diante da pandemia que enfretamos.

Ainda assim, ao longo de uma vida, Benchley carregou a culpa por seu livro ter conferido uma reputação de monstro aos tubarões, a ponto de popularizar e incentivar a caça predatória nas décadas seguintes ao lançamento do filme. Tubarão ainda é um dos filmes de maior bilheteria de todos os tempos, mas, segundo sua esposa Wendy, esse sucesso viria a atormentar a consciência de Benchley até sua morte em 2006. Motivados pela repercussão do Blockbuster dirigido por Spielberg, os Benchley embarcaram em uma campanha para defender os tubarões nas décadas seguintes: envolveram-se com uma série de organizações ambientais, ajudaram a produzir documentários sobre a vida selvagem e viajaram pelo mundo dando palestras sobre o tema.

tubarão-filme-steven-spielberg
Pôster do filme Tubarão

Então, por mais que se desenvolvam como uma crítica sobre a intervenção humana na natureza, é necessário muito cuidado ao realizar filmes de eco-horror que retratem animais importantes para o ecossistema e para a cadeia alimentar do nosso planeta. Podemos discutir até se esse tipo de filme deveria ser feito pelos humanos, que são a verdadeira ameaça para as outras espécies. 

Em Tubarão, vemos Quint, um velho caçador de tubarões e estadunidense patriota insuportável, interpretado por Robert Shaw, não só soltar um monte de desinformação sobre tubarões, como também se vangloriar por ter participado do ataque atômico à Hiroshima e Nagasaki. E por falar nesse fato…  

godzilla
Godzilla (1954)

Agora sim, uma história mais densa e um retrato sombrio da guerra que, ao contrário do ufanismo estadunidense do anterior, coloca os EUA como monstro. Godzilla, chamado de Gojira no Japão, é um monstro gigante que, ao longo de 70 anos de existência, virou um forte símbolo japonês. 

Além dos ataques atômicos que marcaram o fim da Segunda Guerra Mundial, Godzilla também foi inspirado por outro evento real: em 22 de janeiro de 1954, o navio Daigo Fukuryu Maru partiu em mais uma jornada de pesca cotidiana. Entretanto, acabou indo pescar em uma região marítima onde eram feitos testes com bombas atômicas, algo que a tripulação não tinha conhecimento. No mesmo dia, os pescadores expostos à radiação desenvolveram queimaduras em todo o corpo, sangravam pelas gengivas e ficaram com os olhos inchados, como se fossem cair do rosto. 

Inclusive, as cicatrizes e rugas presentes no design do Godzilla fazem referência às marcas presentes nos sobreviventes dos desastres nucleares do Japão.

 

Os Pássaros de Alfred Hitchcock

Os Pássaros é outro filme muito interessante, apesar da loucura de Hitchcock em atacar sua atriz principal com pássaros de verdade, também considerado um eco-horror, isso se o que ocorre no enredo, inspirado no conto The Birds, de 1952, escrito por Daphne Du Maurier, for interpretado de modo literal. Mas há também análises do filme na perspectiva psicanalítica que, na verdade, irritavam muito seu diretor. 

Aqui, vemos mais uma vez o perigo em retratar animais sem qualquer explicação para seu comportamento agressivo e estranho, que foi um enredo considerado inovador na época justamente por ser um filme popular, mas ao contrário dos outros sucessos de bilheteria, possuía um final aberto, sem razão explícita para o ataque dos pássaros. Então, fica aí a dica de mais um clássico para quem não viu.

A Noite dos Mortos Vivos (1968)

Também inspirado em uma obra literária — o livro I Am Legend (1954), escrito por Richard Matheson — é um dos meus clássico do horror favoritos e o primeiro filme do gênero a ter um protagonista negro. Nele, a natureza se revolta a ponto de fazer os mortos perseguirem os vivos, como punição pela radiação irresponsável que deixam alastrar pela Terra. A trama se desenvolve em uma situação de clausura que, para o espectador contemporâneo, pode parecer batido em alguns pontos. Mas vale muito a pena assistir, principalmente pelo final, que ainda assim consegue surpreender.

Voltando para A Fera…

Enfim, chegamos no lançamento que não é nem de perto tão original quanto os que citei até aqui, mas até que consegue ser um bom entretenimento. Alguns bons componentes chamam atenção pela qualidade, como a música que acompanha os planos pela savana africana, os atores, a fotografia e a narrativa que, para mim, desceu de um jeito redondo, quase capaz de enganar os olhares mais chatos que buscam sempre as forçadas de barra dos roteiristas.  

Este também é um filme de clausura que prende o pai, interpretado pelo belíssimo Idris Elba, que se encontrava distante das filhas, interpretadas por Leah Jeffries e por Iyana Halley, trio que precisa superar as mágoas para que, unidos, possam sobreviver à ameaça que os cerca. Esse tipo de filme muitas vezes parte do pressuposto estrutural, ou seja, é muito provável que já fosse pré-determinada a situação de cerco, que causará efeitos de terror e de suspense. Assim, o trabalho dos contadores da história será amarrar a trama e a construção dos personagens que melhor se adequem à narrativa, cujo objetivo é transmitir essas sensações. Mas arrisco dizer que nenhum deles consegue ser impecável. Para que se mantenha a clausura até o fim, ou até quando convém, é necessária a utilização de um ou outro Deus Ex Machina – expressão utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável ou mirabolante para uma obra ficcional. O sucesso desse tipo de obra é tentar disfarçá-las ou usá-las o mínimo possível, o que, na minha opinião, A Fera faz até bem.

Também podemos discutir sobre o perigo em representar o Leão, a Fera a quem o título se refere, como um monstro quase imortal que persegue humanos, quando na verdade esse animal que é vítima de caça ilegal e predatória, assim como os tubarões que falei lá em cima. Só que, em A Fera, o animal não ataca de graça. A vingança do bicho começa quando seu bando é morto por um conjunto de caçadores e traficantes de animais selvagens, que invadem a reserva ambiental em que se passa o filme.

Não sou a favor do olho por olho na vida real, mas quando as obras ficcionais usam nossa raiva como fonte para orquestrar uma vingança, por mais que seja violenta, quase sempre sou envolvida pela catarse. Por isso, no momento em que vi os leões serem mortos pelos caçadores no início do filme, passei a torcer pelas perseguição e punição desses criminosos, imposta pela própria Fera. Além dela, embora eu já soubesse que seria um personagem que não iria sobreviver, torcia também por Martin, coordenador da reserva interpretado por Sharlto Copley, que, como ficamos sabendo ao acompanhar o enredo, costumava matar os traficantes de leões. Ele também cumpre o papel de manter o espectador informado, ao dizer que as ações do Leão que ataca os protagonistas não é nada comum para a espécie, e reitera que, normalmente, esses animais que são as vítimas dos humanos. Talvez por esse motivo a Fera os esteja atacando. Mas é óbvio que a gente se identifica com os três personagens principais e fica feliz quando eles saem do cerco vivos.

Ao meu ver, A Fera é um filme redondinho e morno, que esfria no final. Há uma cena incrível do Idris Elba lutando corpo a corpo contra o Leão, mas, simbolicamente, não sei muito bem o que o filme quer nos dizer. Não explica a força descomunal que o Leão ganhou por ter sua família morta por caçadores e que, tão misteriosamente quanto surge, desaparece. Penso que a obra poderia ter aprofundado mais nas consequências da intervenção humana naquele habitat específico, bem como desenvolvido um encerramento impactante atrelado a isso. Contudo, abstém-se e escolhe focar apenas na sobrevivência da família e na resolução de seus dramas. 

Enfim, A Fera é um filme tecnicamente mais bem feito do que muitos que citei neste texto, mas não ganha em profundidade. É até mesmo um bom filme, mas também não é nada demais. 

 

REFERÊNCIAS

RUST, Stephen; SOLES, Carter. Ecohorror special cluster: living in fear, living in dread, pretty soon we’ll all be dead. Interdisciplinary Studies in Literature and Environment – ISLE, v. 21, n. 3, p. 509-512, apr. 2014.