Lançado em 1982, A Cor Púrpura foi escrito por Alice Walker, tornando-se um marco na literatura. Não à toa, ele logo foi adaptado por um dos maiores diretores da sétima arte, Steven Spielberg, e a protagonista foi ninguém menos que a maravilhosa Whoopi Goldberg. Esse filme também abriu portas para várias mulheres negras se verem nas telas e perceberem que elas também poderiam brilhar no cinema. Se procurar, muitas atrizes têm este mesmo relato.
A história gira em torno de Celie, uma mulher negra que vive no sul rural dos Estados Unidos, durante o período de segregação racial. A trama aborda temas como racismo, misoginia, violência doméstica, entre outras coisas, na forma de cartas de Celie para sua irmã Nettie – de quem foi separada – e para Deus.
No filme de 2023, a narrativa de A Cor Púrpura não anda por meio de cartas. Na verdade, demorei um tempo para entender que Celie (Fantasia Barrino) era a protagonista, pois no início ainda não há um foco específico nela ou em Nettie (Halle Bailey/Ciara). Por não conhecer a história original, até achei que poderia ser sobre as duas irmãs, e no começo dá a entender que é por aí, mas somente até a personagem de Celie ser obrigada a casar com Mister (Colman Domingo), um homem mais velho, violento e abusivo, e ela se tornar algo parecido com o centro da narrativa. Explico.
A Cor Púrpura introduz muitos personagens e subtramas ao longo do primeiro ato, como se distribuindo cartas para jogadores em uma mesa redonda.
Celie é a típica personagem que muita gente desgosta por parecer fraca, como se ser forte fosse unicamente bater de frente. Ela tem uma força quieta, sendo corajosa do seu jeito. Uma mulher dentro da situação em que ela vive dificilmente consegue sair sozinha, então é importante como vai sendo construída a sororidade, como ser amada e apoiada faz com que Celie aos poucos vá entendendo o seu próprio valor, como a própria vida não precisa ser infeliz. Dentro dela, guardou muita coisa boa, nunca sendo maldosa com ninguém, e olha que uma galera merecia.
O roteiro em A Cor Púrpura parece meio frouxo, querendo muito fazer a cola entre cenas espaçadas, com longos períodos de tempo entre elas, inclusive, deixando momentos em aberto e que não são explorados posteriormente, como se jogando capítulos do livro na tela do cinema, sem se preocupar muito em como amarrá-las a ponto de formar uma coisa uniforme e coerente. Não gosto da sensação que me deu, pois parece que estamos lendo uma revista e não queremos ver tudo, então ficamos pulando para as partes que nos convém.
As músicas são muito boas, passam muito bem o que se propõem e a escolha de atrizes e atores para o filme é divina. Cada personagem convence muito no seu papel num nível em que desejamos proteger a protagonista, temos raiva do seu marido, sentimos nojo, medo, tudo por ela, nos apaixonados por Shug Avery (Taraji P. Henson), assim como todo mundo na cidade, entre outra miríade de emoções que o elenco consegue evocar de nós, com as atuações e as músicas.
A direção de fotografia fez um trabalho magnífico para contemplar cada cenário, que possui paleta de cores bem selecionada. Por exemplo, quando conhecemos Shug, ela usa cores quentes, ousadas, que mulheres “direitas” não usariam, e à medida que o tempo vai passando, sua vida vai mudando, as cores continuam vivas, mas se alteram para acompanhar a personagem e o seu momento de vida. É fantástico e eu adoro quando fazem isso.
O filme também explora bastante o âmbito religioso, normalmente bem presente em narrativas negras, ainda mais estadunidense, e é interessante como ligaram isso à música – também algo que aparece constantemente em histórias negras. A espiritualidade de Celie é constantemente testada, e aos poucos, ela vai se entendendo – afinal, com tanta injustiça acontecendo com ela, como permanecer completamente incólume em sua crença? Difícil. Eu não acredito em Deus, mas o discurso de Shug sobre ele é tão bonito que quase deu vontade.
A Cor Púrpura é uma história que tem tudo para ser a mais incrível possível, mas talvez em mãos mais competentes para realizar a adaptação, atingisse todo o seu potencial. Continua sendo muito boa, e vale sim uma viagem ao cinema para conhecer de perto a linda história de Celie.