Se não fosse pelo Twitter, talvez o filme polonês 365 Dias (Barbara Białowąs, 2020) tivesse passado despercebido por mim. Isso porque mal tenho acessado a Netflix durante a quarentena e não ando com muita paciência para os lançamentos da casa, porém o burburinho foi grande – e, para a minha pequena bolha que não é simpatizante desse primo distante de Cinquenta Tons de Cinza, não foi nada bom. Masoquista que sou, com tempo livre no domingo, resolvi conferir a proeza deste soft porn da tun-dun.
Como se eu não tivesse coisa melhor para fazer…
Puro suco de clichê
Quem já tem alguma familiaridade com best sellers de literatura erótica, tais como o próprio Cinquenta Tons ou After (2019), vai encontrar a mesma fórmula mágica que faz esse tipo de texto ser tão vendido, a ponto de ganhar franquias cinematográficas. 365 Dias, que também nasceu de uma série de livros, não foge à regra. Está tudo ali, até mesmo os diálogos, que se repetem à exaustão nas narrativas do gênero.
E é aí, neste exato ponto, que reside o grande problema.
No nosso enredo, a versão atualizada das obras de Michelangelo, Massimo (Michele Morrone), perdeu o pai de forma trágica e, neste incidente, também quase foi bater um papo com o pessoal pintado na Capela Sistina. Nesse morre-não-morre, o herdeiro de uma das famílias da máfia italiana tem uma visão com uma moça muito bonita e, como ele ganhou no cara-coroa e não morreu, resolveu dar uma de Goku e saiu procurando a dona pelo mundo. Cinco anos depois, como se realmente tivesse encontrado todas as Esferas do Dragão, ele encontra a dita cuja, Laura (Anna Maria Sieklucka), no aeroporto.
Bonito que é, Massimo poderia ter chegado na mina e, com três cantadas, negócio resolvido. Nem precisava de muito, o cara tem aquilo. O conflito poderia se desenvolver todo em cima da moralidade do “meu namorado é um mafioso”. Porém, não. Não para este tipo de gênero erótico, que vê na violência a essência da sensualidade, da paixão. Massimo sequestra Laura, que estava na Sicília para comemorar seu aniversário, e faz uma proposta “irrecusável”: passar um ano em cárcere para que este anti-herói se mostre digno do seu amor.
Começamos bem, hein, parça?
Isto não é A Bela e a Fera, baby girl
Laura, apresentada como uma mulher que sabe se defender e lida com cachorros grandes em seu ambiente de trabalho, resiste no primeiro momento. Tenta fugir, bate de frente com seu captor, é tratada feito lixo por ele (afinal, um homem da máfia italiana não está acostumado a ser enfrentado dessa forma). Mas cede, e não demora nem trinta minutos de filme para isso. Não há como não fazê-lo, não é mesmo? Ele é lindo, afinal de contas. Rico de doer. Parece saído das mãos de Michelangelo. Se pudesse, daria o mundo para mim. Compra roupas e sapatos caros, me veste feito uma rainha. Capitalismo puro. E sabe me f*der como ninguém – como comprovam as cenas de sexo, que parecem uma mistura de takes de Soltos em Floripa com De Férias com Ex.
É um prato cheio para a imaginação voar. Quem não gostaria de ter um homem assim? Que faz tudo por você, que assegura que vai te proteger contra tudo e todos, e que faz sexo com a vitalidade de alguém que elevou o cosmo e ultrapassou a velocidade da luz? O lado negativo fica escondido por tantas características maravilhosas, que ganham brilho e cor conforme a narrativa se desenvolve na tela. Não à toa, se você procurar a conta do Instagram de Morrone, há vários e vários comentários de mulheres pedindo para que ele as sequestre. Já no Twitter, é possível encontrar tweets de pessoas se perguntando quando o mafioso italiano das suas vidas as encontrará. Uma reação muito parecida quando Cinquenta Tons de Cinza explodiu e o público se deparou com um charmoso Christian Grey, que afirmava com a voz doce: “I don’t make love, I fuck.”
É nesse ponto que as similaridades entre esses primos, e tantos outros, se tornam evidentes para mim. Nas pequenas e nas grandes violências, que vão desde a forma como eles escolhem o vestuário das moças, ao controle que exercem sobre elas, definindo até mesmo para onde irão. No caso de Laura, a Síndrome de Estocolmo é estampada. O cárcere é condição para o relacionamento ser construído, sem ele não existiria enredo. E não importa o quanto o filme tente mostrar um lado mais “bondoso” de Massimo, como quando ele se vinga de familiares envolvidos com tráfico infantil, ou quando afirma que não fará nada que Laura não deseje. Não importa. Ele já fez ao privá-la da sua liberdade.
Outro comentário muito comum de encontrar: comparações entre o filme e A Bela e a Fera. Definitivamente não. Além de ser uma leitura rasa demais, é preciso parar com esses anacronismos entre textos como esses e um conto de fadas antigo, que se repete em tantas e diferentes culturas. Há uma razão para A Bela e a Fera, que trabalha com a figura do noivo monstruoso, funcionar da forma como funciona, e leituras erradas geram interpretações erradas. Como as do filme, em que se apaixonar pelo seu belo raptor pode germinar a ideia de que há salvação para ele através do amor. Sabemos como é a vida real.
Há formas mais saudáveis?
Quando resolvi perder quase duas horas da minha vida com 365 Dias, eu sabia o que me esperava. O enredo era o mesmo que vi em várias outras obras do gênero, com diálogos que se repetem como receita de bolo. O que me preocupa, no entanto, é que, independente do tempero que se ponha nessa mistura, haverá gente para comprar uma fatia. E que vai gostar do sabor.
Relacionamentos abusivos fantasiados como meta é desserviço, e essa tecla precisa ser batida e ressaltada. Não por acaso, como ressaltado no tópico anterior, espectadoras já enchem comentários das redes do ator principal desejando um Massimo para si mesmas, e o perigo dessa construção é claro. Uma obra de ficção, certamente, não pode definir os caminhos que uma pessoa trilhará do lado de cá. Contudo, somos influenciados por aquilo que consumimos. Um exemplo que parece bobo, mas que põe em cheque o que eu falei? O aumento das ações da Yakult após a estreia de Para Todos os Garotos que Já Amei, também da Netflix.
Está tudo ali. As espectadoras já sonham com seus Massimos, homens lindos, atenciosos, mas que controlam suas saídas, suas roupas, que as aprisionam. O abuso é personagem principal do enredo, tanto quanto Massimo e Laura, participa de todas as cenas, ainda que seja ignorado e ofuscado pela direção. E quem não o enxerga, compra a narrativa que o filme vende, deixa-se influenciar. O perigo reside neste ponto. A vida real não é bela como o palácio de 365 Dias faz parecer. Tomando por base a realidade que vivemos hoje, em 2020, a violência doméstica aumentou 45% só no estado de São Paulo, enquanto a taxa de feminicídio subiu para 46,2%. Se você pesquisar um pouco, vai encontrar relatos e notícias que muito se assemelham: companheiros violentos, controladores… Soa familiar?
Eu não ponho culpa, porém, em quem consome esse conteúdo à procura de algo que dê asas à imaginação. Meu grande questionamento é com quem os produz e os realiza, com quem edita e vende. Não acredito que seja impossível construir enredos eróticos, com um romance consistente e cenas de sexo atrativas, sem usar esse tipo de recurso. Se a força da narrativa está no desenvolvimento da relação dos personagens, e no próprio crescimento deles, então sim, existe um universo de possibilidades mais saudáveis.
Se não for o caso, bem… Então temos de continuar questionando o que a indústria nos obriga a consumir. Por 365 dias ou mais.