Há muito tempo sabemos que ser do Nordeste do Brasil é sofrer xenofobia dentro da nossa própria casa, que seria o país. Existe uma brincadeira, com um fundão de verdade, de que nós, nordestinos, chamamos o Nordeste de país. Nossa cultura, nossos costumes, tudo é muito diferente da outras regiões e somos considerados como inferiores – mesmo que todos os estudos, as reportagens e nós mesmos provemos ao contrário, a surpremacia do Sul (depois da Bahia, tudo é Sul) tenta nos oprimir.
Recentemente, temos os casos sofridos no BBB pela participante Juliette, em vários ataques xenofóbicos pelo simples fato de ser nordestina, mesmo que seja uma pessoa maravilhosa – embora cometa vários deslizes de outras maneiras, que não cabem aqui. E isso é na TV aberta, todos assistindo. Na internet, também local extremamente público, a xenofobia contra nós corre solta – mesmo sendo CRIME. E se por acaso não fosse, pela lei, considerada como crime, moralmente, ainda não é correto.
A partir de todo esse conceito de ser nordestino, três pessoas do Nordeste resolveram criar um novo gênero literário: o Sertãopunk, feito de ficção especulativa voltada para a região Nordeste – área pouco explorada na literatura, devo dizer. E, quando é feito, em qualquer mídia, o nordestino é sempre visto como pobre, como analfabeto, que vive na seca, burro, preguiçoso etc. Há uma desvalorização regional que se estruturou por toda a nossa história. Somos tratados como se o Nordeste fosse homogêneo e não houvesse, em cada estado, a sua particularidade – que é absolutamente normal em todas as regiões. A exemplo disso, temos o cyberagreste, que, por mais que traga uma estética retrofuturista, ainda escolhe o símbolo do Lampião e o cangaço para trabalhar, como se fosse apenas disso que o Nordeste fosse feito, e vendendo a ideia de salvador branco, como se a nossa região necessitasse disso.
E, pensando em tudo isso, Alec Silva, Gabriele Diniz e Alan de Sá resolveram iniciar um gênero que nos agraciasse de verdade: o Sertãopunk, feito por nordestinos.
A criação do Sertãopunk
Claro, criar um gênero literário não é fácil. É necessário estruturá-lo, desenvolver as modalidades, pensar nos modos como ele deve ser feito e representar, de maneira especulativa, a nossa região. O Sertãopunk nasceu da pluralidade que envolve o Nordeste, dando liberdade para cada autor trabalhar a sua própria visão e desconstruindo a ideia “de fora” que as pessoas têm de nós e de onde vivemos.
Foi-se criando alguns critérios, tais como evidenciar os avanços tecnológicos, sobretudo os ecológicos, que proporcionaram alta qualidade de vida para os nordestinos; presença de desordem social por parte de uma elite coronelística; reformular o processo migratório; demonstrar a região como polo independente; a utilização de regionalismos.
Buscou-se, também, referências em um realismo mágico, vertente já trazida ao Brasil, mas não utilizada no Nordeste; no gênero Solarpunk, que trabalha a superação humana em relação aos problemas climáticos e ambientais; no Afrofuturismo, por trabalhar ancestralidade e espiritualidade como peças-chave da narrativa – levando em consideração o número de quilombos que ficam no Nordeste e os inúmeros povos indígenas que vivem na região.
O gênero é pensado justamente para focar nos problemas e conflitos nordestinos, como o coronelismo, traçar o paralelo entre o cangaço (que tecnicamente acabou) e o banditismo etc. Apesar de serem temas sempre retratados de fora como sendo parte principal do Nordeste, o Sertãopunk não pode eliminá-los, pois fazem parte sim da nossa história. Apenas são uma pequena parte do todo.
A importância do Sertãopunk
Como citado, a ideia é quebrar os estigmas que a nossa região sofre, sempre vista como miserável e sedenta, que visa sempre sair da própria casa em busca do melhor para si e a família por não aguentar a seca. Porém, o Nordeste é maior do que a sua aridez ou a caatinga, estas fazem parte, mas não são a principal.
A ideia do Sertãopunk tem sido mostrar a diversidade entre os estados que formam o Nordeste, sotaques, culturas, e riquezas – pois nossa região, na verdade, é bem mais avançada do que se espera, e traz uma variedade de coisas para o resto do país que não são reconhecidas por conta da ideia estúpida de que somos inferiores.
Um gênero literário voltado para essa diversidade e a exploração do seu todo é muito importante para a divulgação do nosso povo. Qualquer pessoa, obviamente, pode escrever Sertãopunk, não sendo obrigatório ser nordestino para tal, porém, o que esperamos com isso é que escritores e escritoras abram os olhos e enxerguem o Nordeste para além da seca e vejam nossos rios, nossas praias, nossa cultura rica, o povo animado, a força de vontade e a determinação de quem é sempre oprimido e dá a volta por cima.
Interessados em saber mais? A editora Corvus lançou vários títulos desse gênero, e você pode encontrá-los aqui (todo e-books):
1.A noite tem mil olhos: Coleção Carcarás (Alec Silva)
2. O sertão não virou mar: Coleção Carcarás (G.G. Diniz)
3.Morte matada: Coleção Carcarás (G.G. Diniz)
4.Abrakadabra: Coleção Carcarás (Alan de Sá)
5.Nós somos os santos de sangue durante a noite: Coleção Carcarás (Alec Silva)
6.Tudo que eles tocam…: Coleção Carcarás (Abel Cavira)
7.Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do amanhã (Alan Sá, G.G. Diniz e Alec Silva)