o-outro-lado-da-bola-hq o-outro-lado-da-bola-hq

O Outro Lado da Bola (Editora Record) | Crítica

Por Esdras Araújo

Futebol e quadrinhos são duas de minhas paixões (junto da música, literatura, cinema, etc) e é muito legal quando se encontram, como ocorre em “O Outro Lado da Bola” (ed. Record), quadrinho escrito por Álvaro Campos e Alê Braga, desenhado por Jean Diaz.

Para além da disputa esportiva em si e os interesses mercadológicos, o futebol é um fenômeno cultural. Por trás de sua aparente simplicidade, esconde um universo complexo. A depender da abordagem, podemos ver o futebol como metáfora sociológica, antropológica, psicológica e até linguística. Há inúmeros significados e histórias presentes nos nomes de times, cores de camisas, escudos, terminologias, histórias e características de seleções, estilos de jogo, comemorações e tudo mais que forma seu contexto.

Muitos o olham apenas como uma atividade infantilizada praticada por adultos, que não merece a atenção que possui, tendo se tornado um negócio bilionário. Outros tantos atribuem a ele um papel importante em sua vida, quando não central, dada sua capacidade de mobilização emocional, trazendo fascínio e até sofrimento em meio à disputa e resultado obtido no campo. Um esporte, inúmeros significados e leituras. O futebol, como fenômeno cultural, também é imitação da vida e, assim como ela, tem inúmeras facetas e uma delas bem cruel, como já denota a capa feita por Viviane Pepe, com uma bola ensanguentada: a homofobia presente no futebol masculino. É sobre isto que este quadrinho trata.

Conta a história fictícia de Cris, grande craque, capitão e ídolo do E.C. Alvinegro Paulista, jogador da seleção brasileira e idolatrado por uma verdadeira nação de torcedores. O jogador mantém um casamento de fachada com sua empresária e vê seu mundo desabar quando Guto, seu ex-namorado, é brutalmente assassinado e toma conhecimento, numa calorosa discussão com a mãe da vítima, que os assassinos homofóbicos são integrantes da maior torcida organizada do time em que atua. Cris fica bastante abalado ao saber deste detalhe e decide então revelar sua homossexualidade numa entrevista ao vivo em um programa de TV, que relutou em conceder.

Após sua declaração, Cris vê sua vida ser tragada por uma verdadeira tsunami. Enfrenta uma dura reação da diretoria do clube, é confrontado por colegas preconceituosos do time (com Cris expondo que não é novidade para ninguém a presença de homossexuais num time de futebol, embora devidamente mascarada), rejeitado por grande parte da torcida, questionado por patrocinadores e diante de uma crise familiar, ao precisar lidar também com as reações de sua filha adolescente, que soube da homossexualidade do pai pela TV (apenas a esposa/empresária sabia), embora sua atitude corajosa tenha recebido apoio de parte da imprensa. Tudo isto, contudo, não desmotiva Cris, que continua firme com a carreira, enfrentando a tudo e a todos.

O roteiro percorre outras micro histórias que orbitam em torno da trama principal e ajudam a dar boa dinâmica aos acontecimentos. Os desenhos de Jean Diaz (Mulher-Maravilha, Vampirella e outros) também conseguem evidenciar o drama e tensão que a narrativa traz consigo. Todo o contexto do mundo do futebol é bem retratado e crível. Infelizmente algo muito parecido ao que é mostrado em “O Outro Lado da Bola” muito provavelmente ocorreria no Brasil, país em que até hoje (2020) nenhum jogador ou ex-jogador revelou publicamente ser homossexual. Não por uma decisão voluntária, mas sobretudo por medo, com o mundo que circunda o futebol masculino sem pudor algum de mostrar o quanto é homofóbico, basta observar os xingamentos usados no estádio, contra adversários e árbitros, sempre machistas e relacionados à homossexualidade, algo reproduzido inclusive pelas crianças que o frequentam. Vemos médicos, jornalistas, professores, vendedores e mais uma centena de profissões exercidas por homossexuais.

O próprio futebol feminino já lida de forma bem mais natural com a questão, pois vemos jogadoras que assumem publicamente sua homossexualidade (vide a rainha do futebol feminino Marta e a norte-americana Rapinoe, eleita melhor jogadora do mundo em 2019 e grande voz contra o preconceito no esporte), embora também sofra com os efeitos colaterais e a estigmatização (o velho papo de que futebol feminino é coisa de lésbica), oriundos da homofobia e machismo presentes na modalidade masculina, estabelecendo uma permanente luta pela igualdade de gênero no esporte, com suas grandes craques sendo bastante ativas, politizadas e representativas na causa. Hoje temos a previsão de punições a clubes e seleções por atos e manifestações de homofobia, referendadas por FIFA e CBF, mas há um longo caminho a ser percorrido para a mudança de toda uma cultura de preconceito. Resta torcer para que seja o começo de uma grande virada, que já está atrasada há mais de um século.