Nós somos os Replicantes de Blade Runner

Imagine viver em um mundo onde as grandes corporações comandam o que a gente come, vê e experimenta. Um mundo onde sua força de trabalho é vendida por quase nada. Um mundo onde as castas mais baixas da sociedade são colocadas umas contra as outras, enquanto os mais poderosos sempre prevalecem. Um mundo onde nossa vida é uma mentira. Onde a tecnologia reina. Onde nossas relações são feitas por aparelhos digitais. Além disso tudo, somos tratados com preconceito como menos que humanos.

Essa descrição poderia entrar em um filme de cyberpunk como Blade Runner, mas como diriam os entusiastas das tecnologias: o futuro é agora. Não é de hoje que as obras de ficção científica utilizam mundos fantásticos para falar de problemas reais, isso foi passado desde os livros do gênero para os filmes e outras obras midiáticas. Daí a importância dessas obras, pois nos faz refletir sobre nossa existência enquanto absorvemos uma obra de entretenimento.

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Peguemos Blade Runner. Na história, os replicantes são seres humanos sinteticamente criados para seres escravizados e trabalhar em locais que as pessoas não desejam. Os replicantes tem baixa expectativa de vida, possuem trabalhos perigosos e sofrem preconceito. Tudo isso poderia ser muito bem aplicado a um ser humano médio morador de periferia, muitas vezes essas pessoas trabalham em empregos de risco sem nem ter uma legislação ao seu lado, tendo pouco tempo de vida útil. Outros são obrigados a ir para o crime por falta de oportunidade, causando mal sim à população, mas sofrendo preconceito por parte das pessoas e do Estado.

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Deckard e K são Blade Runners, replicantes que trabalham caçando sua própria raça, são treinados para vê-los como inimigos. Não é diferente de um pobre que teve poucas oportunidades na vida falando mal de outro igual que acabou buscando alternativas criminosas. Somos treinados pela mídia e pelo estado a odiar essas pessoas, a vê-los como menos que humanos. Só não é dito para nós que o sistema em que vivemos é que cria essas pessoas, o sistema que nos agride todos os dias, nos explorando como replicantes. Os “cidadãos de bem” escolhem viver dentro do jogo, ter uma vida normal. Mas o que é normal?

Agora vão seguir alguns spoilers do novo filme Blade Runner 2049.

Na trama, acompanhamos K, um replicante policial que vive para o trabalho. Seu único escapismo é sua esposa digital. No começo do filme vemos sua vida patética se transformar em importante quando ele aprende que talvez possa ser especial, além disso tudo é reforçado por sua presente e compreensível esposa de mentirinha, fazendo-nos até a acreditar nesse relacionamento. Ao final do filme, ele descobre que é ninguém novamente, somente mais uma engrenagem sem importância no universo, nem mesmo o seu relacionamento era único, eram só linhas de diálogo escritas pela mesma corporação que agora o persegue.

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Nós somos K, vivendo nossas vidas de mentira e esperando um milagre nos dizer que somos importantes, que vamos virar ricos, famosos ou atores de TV. O que nos resta no final, à frente da inutilidade e fragilidade da vida é – parafraseando Gandalf de O Senhor dos Anéis – decidir o que fazer com o tempo que nos é dado. K percebe que mesmo sendo um coadjuvante da grande história de outros, ele pode fazer essa diferença e lutar contra o sistema que sempre lhe fez mal. Cabe a nós decidir se vamos ficar bebendo, trabalhando e nos entretendo com mentiras ou se vamos fazer alguma coisa para nos tirar de uma vida de apatia.

Termino esse texto com um trecho da música (ou mantra) Fitter Hapier, do Radiohead. A música faz parte do álbum OK Computer, que foi muito inspirado em contos de ficção científica como 1984 ou Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, que deu origem ao original Blade Runner.

“Em forma, mais feliz, mais produtivo,
Confortável,
Sem beber demais,
Exercícios regulares na academia
(3 dias por semana)
Se relacionando melhor com seus sócios e empregados,
À vontade,
Comendo bem
(Nada de comidas de microondas e gorduras saturadas),
Um motorista mais paciente e melhor,
Um carro mais seguro
(Um bebê sorrindo no banco de trás),
Dormindo melhor
(Sem pesadelos),
Sem paranoia,
Cuidadoso com todos os animais
(…)
Em forma,
Mais saudável e mais produtivo
Um porco em uma gaiola de antibióticos.”