Protagonistas com ética questionáveis são comuns nos filmes de Martin Scorsese. De taxistas psicopatas, lutadores de boxe problemáticos a integrantes da máfia, o diretor sempre gostou de trabalhar com personagens de tons de cinza para revelar alguns dos traços mais detestáveis da humanidade. Em Assassinos da Lua das Flores, Scorsese consegue entregar um de seus melhores trabalhos ao contar uma história baseado em fatos através do ponto de vista de quem está errado.
Inspirado no livro de mesmo nome, a trama acompanha a história de ganância que caiu sobre a nação indígena Osage, nos EUA. No início do século XX, eles foram considerados o povo com a maior renda per capita do mundo devido à quantidade de petróleo em suas terras e os acordos de concessão do governo. Isso acabou atraindo diversos homens brancos aproveitadores, como Bill Hale (Robert De Niro) e seu sobrinho Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio). Eles faziam parte de uma grande conspiração para fazer Ernest casar com Mollie (Lily Gladstone) e matar seus familiares para ficar com toda a fortuna da família.
Não dá para começar esse texto sem ficar extremamente grato por termos Martin Scorsese, o maior diretor de cinema ainda vivo, trabalhando no que pode ser considerado um dos picos da sua carreira. Me entristece ver que hoje o diretor geralmente apareça na mídia especializada quando o assunto é falar sobre duração de filmes ou críticas à Marvel. Scorsese é um grande amante do cinema e nunca escondeu suas referências. Nos primeiros minutos de Assassinos da Lua das Flores, ele apresenta uma inspiração aos épicos do velho oeste, mas também aos filmes de Akira Kurosawa. Principalmente em suas tomadas mais abertas, o fotógrafo Rodrigo Pietro (que também trabalhou em Barbie) consegue “pintar” a tela com imagens que podem ser ao mesmo tempo lindas e superdramáticas. Não é coincidência que Scorsese citou uma triste frase do diretor japonês em uma de suas entrevistas recentes: “Somente agora estou vendo as possibilidades que o cinema pode ter, e é tarde demais”.
Através dessa reflexão do diretor com sua própria carreira, só nos resta ficarmos felizes por ele nos entregar essa mais nova obra-prima. Em todos os aspectos, Assassinos da Lua das Flores é Cinema com “C” maiúsculo. Temos um filme com dois queridinhos de Scorsese: DiCaprio e De Niro – que estão em sua melhor forma, entregando personagens carismáticos e detestáveis. No meio desses dois monstros da atuação, temos Lily Gladstone, que foi ovacionada no Festival de Cannes. Molly, personagem de Gladstone, vai além do estereótipo do indígena sábio, trazendo na maior parte do tempo o verdadeiro coração do filme. Uma pessoa com uma pesada carga dramática, em que é impossível não ter empatia e torcer por ela.
Todos os atores estão muito bem servidos com um roteiro cheio de diálogos inteligentes – o que é um ponto batido na filmografia de Scorsese. Apesar de tratar de temas pesados como os limites da ganância e da violência, os diálogos trazem sacadas geniais, muitas vezes cheias de tiradas com humor sarcástico.
Além de um filmaço, Assassinos da Lua das Flores também apresenta um roteiro que busca respeitar ao máximo as vítimas da tragédia envolvendo os Osage. Em grande parte da trama, acompanhamos o ponto de vista dos ”vilões”, e claro que nem tudo é preto no branco. Em muitos momentos, eu fiquei confuso sobre as reais convicções de Ernest (Leonardo DiCaprio). Como é comum nesse tipo de roteiro, você se pega até torcendo para ele ou até tendo pena, em alguns raros momentos. Apesar dos crimes imperdoáveis, Buckhart também é mostrado como mais uma pessoa que foi enganada no esquema maior das coisas.
O filme tenta ser o mais cru possível na forma como mostra essa história real, até mesmo os agentes do FBI não são tratados como “heróis em cavalos brancos chegando no último momento para salvar o dia”. O longa termina até mesmo como uma denúncia, como se tivesse a responsabilidade de contar essa história desoladora da forma real como aconteceu.
Assassinos da Lua das Flores é um filme longo, com suas quase três horas e meia de duração. Apesar de ter um ritmo excelente, eu senti um pouco de desconforto ali perto do final na poltrona do cinema. Acredito que ainda dava para contar essa história cheia de personagens e detalhes com um pouco menos de tempo de tela. Tirando esse pequeno detalhe, é um dos maiores filmes do ano e da carreira do diretor. Com todos os aspectos aplicados na sua perfeição, desde atuação à montagem e trilha sonora, é um retrato de um país que, igual a muitos outros, cresceu se erguendo sobre os cadáveres de seus povos originários. Além disso, é uma denúncia sobre como a ganância pode corromper o coração das pessoas para fazer as maiores atrocidades do mundo por dinheiro. É uma história dura e triste, mas extremamente importante.