Todo mundo que é fã de um bom filme ou uma boa série, já ouviu ou até mesmo falou sobre suspensão da descrença, que seria a ideia de uma história te enganar sem você perceber que está sendo enganado ou até mesmo a aceitação de certos fatos para poder apreciar a obra. O que poucos sabem é que esse termo não é nada novo e foi cunhado em 1802 por um poeta inglês! Curioso? Vamos aos fatos.
Quem é esse poeta inglês?
Samuel Taylor Coleridge, nascido em 1772 em Ottery St. Mary (Devonshire), foi um poeta, crítico e ensaísta inglês que, ao lado de seu companheiro William Wordsworth, é considerado um dos fundadores do Romantismo na Inglaterra. O cara era tão bom, que influenciou personalidades como Lorde Byron e Shelley. Se você é um leitor assíduo, talvez tenha ouvido falar de A balada do velho marinheiro, o seu poema mais famoso, lançado no livro Baladas Líricas (1798), com poemas inovadores e que os consagrou como (ele e Wordsworth, que escreveu essa obra com ele) precursores do Romantismo.
E de onde saiu essa ideia de suspensão da descrença?
O livro Baladas Líricas fez bastante sucesso e, devido a isso, possuiu uma segunda edição, em 1802. No prefácio, Coleridge cita que dedicou-se à questões relativas às pessoas e personagens de natureza romântica, e aqui cito (COLERIDGE, 2004), em que ele afirma que essa dedicação serviu “de modo a transferir de nossa natureza interior um interesse humano e uma aparência de verdade suficientes para prover a essas sombras da imaginação aquela momentânea suspensão voluntária de descrença que constitui a fé poética“.
Se você prestar atenção, a expressão original é: suspensão VOLUNTÁRIA de descrença, e, ao contrário do que se prega hoje – de que a “suspensão de descrença é entendida como o abandono da capacidade crítica diante do apelo imersivo de um universo ficcional” (por exemplo, em LAUREL, 1993; MURRAY, 1998), para Coleridge, a suspensão voluntária da descrença viria de um acordo tácito entre o leitor e o autor (ou, nos casos atuais, diretor e público), em que há uma cooperação mútua onde se concorda em não desacreditar do que se está lendo.
Gostaria de destacar que há uma diferença, para Coleridge, entre descrença e a ausência de crença, em que o primeiro implica em um acordo mútuo, e o segundo em inércia, deixar-se levar.
E o que diabos tudo isso quer dizer então?
“O poeta não nos pede que estejamos acordados e acreditemos, ele nos pede apenas que nos entreguemos a um sonho; e isso com os olhos abertos, e com a capacidade de julgamento oculta atrás das cortinas, pronta para nos acordar ao primeiro sinal de nossa vontade: e, nesse meio tempo, apenas, que não desacreditemos (COLERIDGE, 2004).
Vamos aplicar essa ideia ao audiovisual. No sonho, não sabemos que estamos ali (na maioria dos casos), mas no cinema, sabemos que estamos assistindo a um filme, a algo que, tecnicamente, não existe. Então, a suspensão voluntária da descrença é o ato de deixar de lado esse conhecimento para que possamos nos envolver na narrativa apresentada. Por exemplo, entramos no cinema para assistir a um filme de super-herói. É um contrato tácito entre o público e o filme que iremos suspender a nossa descrença para curtimos a narrativa proposta que, obviamente, é absurda e jamais aconteceria na vida real. Claro que existem “técnicas” para se assistir da melhor maneira ao filme e conseguir, não acreditar, mas simplesmente não desacreditar no que está acontecendo, como não ter distrações, luz apagada, nenhum falatório… Em suma, no “apagamento” do entorno. É óbvio que temos exemplos tão esdrúxulos nas telonas que é impossível desacreditar, e só nos resta sofrer com as tentativas de nos fazer acreditar em algo que não encaixa no resto da narrativa.
No mundo dos jogos, as produtoras estão cada vez mais se esforçando para que o público gamer tenha experiências multisensoriais e tenham uma imersão completa durante o jogo. A música, os gráficos, a história, tudo é milimetricamente calculado para que, a partir do momento em que você der play, voluntariamente se entregue àquela suspensão da descrença e divirta-se naquele universo.
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