Quando o mais longínquo local soa como o quintal de casa
Exposição é algo complicado. Às vezes ela é inevitável para conseguir levar adiante algo necessário, como punir pessoas que por sua vez nos expôs de modo criminoso. A consequência disso pode ser os tão citados ‘cidadãos de bem’ nos julgando, no clássico cenário de culpabilização da vítima. Com medo desse tipo de gente é que muitas garotas abusadas sexualmente e moralmente se fecham num mundo solitário e auto-punitivo, como é o caso de Audrie & Daisy.
Em duas cidades dos Estados Unidos, duas adolescentes são vítimas de estupro em uma festa em que são dopadas por garotos que consideravam seus amigos. Após isso, elas são assediadas virtualmente, e a depressão e a vergonha as encaminham para o suicídio. Audrie & Daisy explora a perspectiva dos adolescentes e suas famílias, incluindo os meninos envolvidos e as garotas dispostas a falar publicamente pela primeira vez.
O documentário chegou dia 23 de setembro de 2016 ao catálogo Netflix, e mesmo não abordando profundamente cada uma das questões levantadas, é de extrema importância discuti-las.
A divulgação de dados na internet é uma delas. Quantas vezes não recebemos conteúdo pornográfico de pessoas anônimas? Quantas vezes já não fizemos piadas com isso? Quantas vezes mostramos esse conteúdo para outros, que por sua vez compartilharam novamente? A grande praticidade que a internet tem nos trazido é muito útil, seja para o uso convencional ou para práticas criminosas. E em Audrie & Daisy foi o que levou a primeira garota a dar um fim na sua vida, por conta da mancha na sua imagem. Por não suportar a ideia de viver num mundo que a julgaria o tempo todo e em todo lugar.
A criminalização da vítima é uma etapa onde Audrie não chegou, mas não é difícil supor que chegaria. Nesse caso foi com Daisy que as coisas se complicaram, devido ao pouco apoio de pessoas fora do seu âmbito familiar como autoridades e o poder político da família de um dos criminosos, chegando a arquivar seu caso. A edição joga mensagens acompanhadas de tags nas redes sociais tanto de apoio à vítima quanto de ódio, e o vocabulário para difamar uma mulher (seja qual for o idioma) é assustadoramente extenso.
A supracitada negligência investigativa por parte da polícia pode ser algo motivador para esses comportamentos. Fazendo um breve paralelo, quantos babacas não usaram declarações das autoridades no caso da garota brasileira estuprada por mais de 30 rapazes no Rio de Janeiro, levantando supostos desvios de conduta e histórico com o tráfico (como se a veracidade disso justificasse qualquer tipo de estupro)? No caso norte americano, esse tipo de atitude é motivada pelo delegado que chega ao ponto de fazer chantagem emocional com o “fato” de sempre culparem os meninos, pobres coitados. Estão arrependidos e melhorando, por que julgá-los tanto? Pois é.
A personagem que amarra os dois principais casos merecia um nome no título. Dalaney é uma garota que passou pelos mesmos problemas que Audrie & Daisy, com a diferença de não ter prestado queixa policial (e o consequente arrependimento). Mas seu envolvimento em criar um grupo de apoio para vítimas desses crimes é o grande lance do filme, onde esses casos infelizmente soam de modo muito familiar em qualquer lugar do planeta.