A nova adaptação da Netflix, A Mulher na Cabine 10 (The Woman in Cabin 10), trouxe novamente à tona o suspense psicológico de Ruth Ware, agora em uma versão cinematográfica dirigida por Simon Stone e estrelada por Keira Knightley. Embora preserve o ponto de partida do romance — uma mulher que acredita ter testemunhado um assassinato em um cruzeiro de luxo —, o filme altera diversos aspectos da trama, da personalidade da protagonista às motivações dos vilões.
As mudanças não são apenas narrativas, mas também temáticas, refletindo uma atualização no modo como o público contemporâneo consome thrillers. Enquanto o livro explora a dúvida e o isolamento psicológico, o longa enfatiza o poder, a corrupção e a busca pela verdade.
A Mulher na Cabine 10: diferenças entre o livro e o filme da Netflix
O papel de Lo: de vítima duvidosa a investigadora determinada
No romance de Ruth Ware, publicado em 2016, Laura “Lo” Blacklock é uma jornalista de viagens com um histórico de ansiedade e insônia. Após sofrer um assalto traumático, ela embarca no cruzeiro de luxo Aurora Borealis para cobrir a inauguração do iate e tenta retomar o controle da própria vida. Quando acredita ter visto uma mulher ser jogada ao mar, o leitor passa a questionar se Lo está realmente presenciando um crime ou se está sendo traída pela própria mente.
Esse elemento de incerteza é fundamental no livro, tornando Lo uma narradora pouco confiável. O suspense surge da dúvida: seria tudo imaginação? Já na versão da Netflix, Simon Stone opta por eliminar essa ambiguidade. A Lo de Keira Knightley é apresentada como uma jornalista investigativa experiente, que sobreviveu a um trauma profissional — a morte de uma fonte —, mas cuja credibilidade nunca é colocada em xeque.
Segundo o próprio diretor, a intenção era afastar o filme da ideia de “gaslighting”, tão presente na literatura e em adaptações anteriores do gênero. “Eu queria me distanciar disso. O público não questiona se ela viu ou não o que viu; eles acreditam nela e acompanham sua luta contra uma conspiração”, explicou Stone em entrevista oficial. A mudança reforça o caráter de denúncia e empoderamento da protagonista, transformando o mistério em uma investigação consciente, não em um estudo sobre paranoia.
Romance e culpa: o que mudou entre Anne, Carrie e Bullmer
Um dos contrastes mais significativos entre as duas versões está no triângulo entre Richard Bullmer, sua esposa Anne e Carrie, a mulher que acaba assumindo a identidade da esposa. No livro, o centro emocional da trama é o caso amoroso entre Bullmer e Carrie. A relação extraconjugal serve como motor para o crime: Carrie acredita amar Bullmer e aceita seu plano de deixar Anne morrer de forma “natural”, para que ela possa tomar seu lugar.
No filme, essa dinâmica é profundamente alterada. O romance entre os dois personagens é praticamente apagado, e o foco passa a ser o poder econômico. A motivação de Bullmer torna-se puramente financeira: ele deseja manter o controle sobre a fundação e o patrimônio da esposa, que pretende deserdá-lo. Carrie é retratada como uma cúmplice relutante, manipulada pela promessa de segurança financeira para sua filha.
Essa mudança desloca o eixo moral da história. No livro, o peso da culpa é compartilhado entre Carrie e Bullmer; no filme, Carrie se torna uma vítima do esquema, o que aproxima o público de sua redenção no final. A adaptação privilegia uma crítica social sobre manipulação e desigualdade, substituindo a dimensão romântica por uma questão de sobrevivência.
As diferenças no desfecho: duas mulheres em busca de justiça
Os finais também se distanciam consideravelmente. Na obra original, após a morte de Anne, Carrie ajuda Bullmer a prender Lo e finge sua morte para a família da jornalista. A culpa, no entanto, consome Carrie, que decide se aliar a Lo. Elas montam um plano de fuga no qual a própria Lo se disfarça de Anne e nada até conseguir ajuda. No confronto final, Carrie é quem atira e mata Bullmer, encerrando a trama com uma sensação amarga de justiça imperfeita.
Na versão da Netflix, o desfecho é menos sombrio. A união entre Lo e Carrie permanece, mas com funções invertidas. Lo toma a frente da revelação pública e expõe Bullmer diante de todos, durante um baile beneficente. Carrie confirma a verdade, assumindo sua culpa e arriscando a vida para desmascarar o empresário. Ao final, ambas sobrevivem — Lo retoma sua carreira e Carrie foge com a filha. A cena final, em que Lo recebe um vídeo da cúmplice em segurança, reforça a ideia de libertação, algo que o livro deixa em aberto.
Um novo tom e um novo olhar
A transformação de A Mulher na Cabine 10 em sua adaptação cinematográfica vai além das alterações de roteiro. O filme adota um ritmo mais direto, priorizando a investigação e a tensão física em vez da dúvida psicológica. Essa escolha também redefine o público-alvo: enquanto o livro fala sobre medo, isolamento e descrédito feminino, o longa trata de poder, manipulação e resistência.
Ao retirar o elemento de “narradora não confiável”, Simon Stone entrega uma protagonista que o público acompanha com empatia e clareza. A Lo do cinema não está questionando a própria sanidade — ela está lutando para provar a verdade em um ambiente que tenta silenciá-la. O resultado é um suspense mais voltado à ação e à crítica social, em sintonia com produções contemporâneas da Netflix.
A Mulher na Cabine 10: duas versões de uma mesma paranoia
Livro e filme partem do mesmo ponto, mas seguem caminhos distintos para chegar à verdade. Ruth Ware constrói um suspense interno, sobre percepção e confiança, enquanto Simon Stone adapta o material para uma história de conspiração e poder. As diferenças entre as versões mostram como A Mulher na Cabine 10 se tornou uma obra versátil, capaz de dialogar com seu tempo tanto na literatura quanto no cinema.