A Caça | Crítica

Nas primeiras cenas de A Caça (2013), uma criança aborda o protagonista no jardim de infância para brincar, ela usa uma toca preta com desenhos de caveira. Seria esse um prenuncio do que espera o personagem principal?

Lucas (Mads Mikkelsen, da série Hannibal) é um divorciado que leciona na creche da pequena cidade onde vive. Enquanto tenta a guarda do seu filho Marcus (Lassel Fogelstrom) ele também participa do tradicional clube de caça local, bebe com os amigos, enfim, um cara querido por todos mas que também é solitário. Tudo muda quando a pequena Klara (Annika Wedderopp), uma criança de cinco anos que é sua aluna e filha do seu melhor amigo Theo (Thomas Bo Larsen) e sua esposa Agnes (Anne Louise Hassing), o acusa de abuso sexual. Acontece que ela apenas queria se vingar de um amor infantil não correspondido por Lucas, e faz isso repetindo palavras obscenas que ouviu em casa. A partir daí começa uma injusta perseguição social.

Chama muito a atenção a questão da inocência. No geral, a sociedade considera quem é inocente bondoso. Sentimos aqui sua real definição: essencialmente a inocência no sentido de ingenuidade e pureza pode ser boa ou má, e ninguém melhor do que uma criança para retratar isso. A acusação que surgiu como um desabafo acaba tomando proporções extremas: Lucas perde seu emprego, seu amigo, sua namorada e o respeito das pessoas. A inspiração para continuar está na figura de seu amigo Bruun (Lars Ranthe) e seu filho, que o apoiam incondicionalmente.

Thomas Vinterberg é cuidadoso e não toma partido. Podemos achar compreensível praticamente todos os pontos de vista. A diretora Grethe (Susse Wold) que acredita fielmente que “as crianças não mentem” (assim como os pais), o dono de supermercado que não quer a presença de um pedófilo atrapalhando seu comércio, e até os questionamentos da recente namorada Nadja (Alexandra Rapaport) fazem parte das variáveis possíveis para essa situação, garantindo uma história verossímil. Nesse ponto de vista, A Caça trata dos erros de julgamento, e as graves consequências que podem trazer.

Todos os tipos de complicações ou perigos ao lidar com o tema abuso infantil passam longe da produção. O roteiro gera uma inquietude imensa, como esse homem vai lidar com essa situação? Vai se matar? Se mudar? É possível uma vida digna depois de tanta injustiça? É aí que entra a grande atuação de Mads Mikkelsen. Cheio de presença, mostra um talento tênue em cada momento da árdua trajetória de seu personagem. Sua esperada explosão vem de forma inevitável e não gratuita, após muita amargura contida. Merecido prêmio de melhor ator em Cannes. A atriz mirim Annika Wedderopp retrata muito bem a criança ingênua que o filme quer apresentar, e a cena onde eles vencem a barreira que a sociedade construiu entre eles é sensacional.

Ao fim restam as sequelas psicológicas. Aquele tiro existiu ou foi imaginado? Os fantasmas dessa experiência irão persistir, tanto na mente de Lucas quanto na forma que as pessoas o observam, mesmo num breve relance do olhar.

Fazendo um breve paralelo da Dinamarca com o Brasil: se apenas com um rumor ridículo semeado por uma rede social foi capaz de levar a um grupo de pessoas “normais” a cometer uma barbárie como no caso do linchamento no Guarujá-SP, como seria hoje a reação dessas pessoas frente a uma acusação como a do filme? Como caso parecido temos o da Escola Base, vergonha eterna para a imprensa nacional pelo modo como foi tratado. O pior: sendo que o primeiro caso é recente (2014) e o segundo já data 20 anos, representa isso uma decadência social? Claro que se trata de locais diferentes, mas a reflexão é importante e necessária.

Texto publicado originalmente em Cinepolitano.