“A tecnologia é moralmente neutra. O que interessa é o que fazemos com ela.”
Odiados pela Nação é, de longe, o episódio “menos” Black Mirror dessa terceira temporada. Ainda assim é o que melhor sintetiza a ideia concebida por Charlie Brooker. Seja pela questão do estilo ou da abordagem, é o episódio que tira a série de sua zona de conforto, mas que amplia o campo de temas que podem ser tratados além de indicar caminhos criativos bastante interessantes.
Na trama, situada em uma Londres futurista, a experiente detetive Karin Parke (Kelly Macdonald) e a novata Chloe ‘Blue’ Perrine (Faye Marsay) precisam desvendar uma série de crimes que tem ligação com mensagens de ódio nas mídias sociais. Poderia facilmente ser a sinopse de um suspense tecnológico perdido nos cinemas ou até mesmo um filme produzido pela Netflix. Mas é justamente nesse lado comum que vive o poder de Odiados pela Nação.
Com 90 minutos de duração, o episódio tem tempo suficiente para apresentar e desenvolver seus temas e suas protagonistas. O conceito das abelhas logo fica marcado em nossa mente, o que é importante para o desenrolar da trama. Conhecemos um pouco da personalidade e das ações das primeiras vítimas da história e vamos entendendo mais das duas detetives e do que suas visões de mundo representam.
Karin está no jogo tempo suficiente para não guardar nenhum tipo de esperança, o que fica claro em seus olhos cansados e geralmente sem vida. Ela já viu de tudo e acredita que poucas coisas ainda sejam capazes de surpreendê-la. Blue é outro lado da moeda. Apesar de já ter passado por algumas situações pesadas, ainda guarda o desejo de que é possível mudar o cenário.
Ao longo de Odiados pela Nação, as duas mudam seus pontos de vista. Karin aprende que o homem se utilizou da tecnologia para construir novas armas e Blue percebe que no jogo do bem vs mal, é preciso sujar as mãos em busca de um resultado melhor. E que salvar o dia nem sempre significa fazer justiça da forma tradicional.
Nos temas, o episódio se permite navegar pelos mais diferentes oceanos. As abelhas que citei no começo do texto, e que são conhecidas como ADIs (Insetos Drone Autônomos ou Autonomous Drone Insects) na trama, tem ligação com um fenômeno bastante curioso e alarmante da natureza: o Colony Collapse Disorder (ou Colapso das Colônias em PT-BR). O CCD é um fenômeno que acontece quando a maioria das abelhas operárias numa colmeia desaparecem e deixam para trás a sua rainha, num lar aparentemente produtivo e completo com tudo que uma colônia precisa pra sobreviver.
Não existe ainda uma explicação definitiva para esse processo, mas as mais populares envolvem o uso de pesticidas, mudanças climáticas e outros fatores, sejam eles naturais ou causados pela humanidade. Mas como o sumiço das abelhas afeta nossa vida? Bem, através da polinização, elas auxiliam no cultivo de boa parte dos alimentos orgânicos que chegam em nossas mesas. Na realidade de Odiados pela Nação, esse problema atingiu níveis irreversíveis. Assim as ADIs foram criadas para evitar o colapso de vários setores da sociedade.
Acontece que nem tudo são flores (viu o que eu fiz aqui?) e por mais que a ideia original fosse inocente, o homem sempre é capaz de se aproveitar de boas intenções. É o que o discurso do agente Shaun Li (Benedict Wong) deixa claro: “milhões daqueles troços voando por aí, cutucando no ecossistema? Nossa, que legal, salvem o planeta, aleluia! Governo nenhum vai investir bilhões nisso só porque um carinha num jaleco sugeriu e a ideia conseguiu 200 votos verdes. Eles viram uma oportunidade de conseguir mais e aproveitaram.”
Após as ações de Edward Snowden, o mundo contraiu uma paranoia quando o assunto é vigilância e liberdade. E é nesse momento que Black Mirror mostra todo seu poder. Incomoda e é desconfortável a atitude do governo de se aproveitar das ADIS, mas é assustadora a forma como essas funções podem ser derrubadas, dando origem a uma nova ameaça. E essa é a conexão com o outro tema do episódio.
Em tempos onde as mídias sociais tornaram-se uma arma poderosa, a liberdade acaba caindo em um abismo profundo. No episódio, as pessoas expressam seu ódio contra celebridades usando a hashtag #DeathTo no Twitter. A conta é delas, logo podem postar o que quiserem. Mas aonde fica a liberdade de falar e agir dos alvos? Tudo o que fazemos, de bom ou ruim, tem uma repercussão na internet.
Odiados pela Nação mostra uma batalha onde as pessoas combatem liberdade com liberdade, mesmo não fazendo a mínima ideia do que o conceito representa. Acontece que, por mais que o governo seja sujo, não foi ele que causou a grande tragédia do episódio. Pelo menos não sozinho. Foram as pessoas, seguindo o famoso efeito manada. Onde ninguém para pra pensar se aquilo é certou ou não, dane-se já que fazemos o que queremos. E as consequências de tais ações nem sempre são levadas em conta.
A culpa não é do Twitter ou das abelhas robôs, é exclusivamente nossa. E como já disse, esse é o episódio que melhor representa Black Mirror. Vemos uma nova tecnologia e todo o seu potencial para o bem, até que a mão do homem entra em ação. Nós somos perigosos, quer você goste de ler isso ou não. Como disse John Goodenough, inventor das revolucionárias baterias de íon-lítio: “A tecnologia é moralmente neutra. O que interessa é o que fazemos com ela.”
Com direção de James Hawes (Penny Dreadful, Doctor Who) e roteiro escrito por Charlie Brooker, Odiados pela Nação é complexo, horripilante e mórbido. Claro que existem alguns deslizes, mas nada que o impeça de entrar para a lista de melhores de todas as temporadas. E ainda deixa o aviso do quanto nossas ações podem se voltar contra nós. Quando você abrir seus olhos?