A Netflix possui um histórico de altos e baixos quando o assunto é adaptação de quadrinhos. O serviço de streaming entrega obras criativas e divertidas como The Umbrella Academy e outras menos inspiradas, como O Legado de Júpiter. Por isso, o receio que cercava essa série era totalmente justificado. Felizmente, o resulto final de Sweet Tooth é bastante inspirado, garantindo um lugar nas intermináveis listas de melhores adaptações da cultura pop e figurando entre uma das grandes atrações desse ano.
Baseada na obra escrita e desenhada por Jeff Lemire, a série é ambientada em um mundo assolado pela pandemia de um vírus conhecido como Flagelo. Enquanto isso, crianças com características animais começam a nascer. Não custa para que esses híbridos sejam apontados como responsáveis pelo caos. Nesse cenário desolador, o jovem garoto-cervo Gus (Christian Convery) cresceu isolado em uma floresta ao lado de seu pai (Will Forte). Quando uma tragédia recai sobre eles, o menino-cervo precisa se aventurar no mundo que sempre buscou evitar. É com essa premissa que Sweet Tooth trabalha as nuances de seu universo pós-apocalíptico.
Embora uma adaptação precise caminhar com as próprias pernas, essa primeira temporada carrega muito do espírito que Lemire concebeu no início de sua obra. O tom introdutório, priorizando o desenvolvimento dos personagens ao invés de jogar várias informações no colo do espectador, é semelhante ao que é mostrado no primeiro volume do quadrinho. Isso é importante para enriquecer o cenário vigente, que é marcado por vários clichês característicos desse tipo de história. E mesmo que a ausência de respostas possa frustrar alguns, acompanhar personagens tão ricos é algo recompensador.
Assumindo seu espírito de road movie, a primeira temporada de Sweet Tooth é dividida em três núcleos: o primeiro é formado por Gus e o imponente Jepperd (Nonso Anozie), que salva o garoto de uma armadilha e o protege durante a jornada. O segundo é composto pelo pacato médico Aditya Singh (Adeel Akhtar), que precisa deixar suas crenças de lado para salvar a vida de sua esposa. Por último, temos Aimee (Dania Ramirez) que administra um local seguro para os híbridos. Embora esses personagens não se cruzem durante boa parte da temporada, a trama é bastante fluida. O espectador sempre é agraciado com novidades e a curiosidade pelos rumos da aventura de Gus permanece viva. Os vários temas discutidos pela narrativa surgem de maneira orgânica, sem a necessidade de discursos expositivos. Com apenas oito episódios, o cansaço presente na maioria das produções da Netflix não é sentido aqui.
Jim Mickle e Beth Schwartz, idealizadores da série, fizeram algumas mudanças pontuais em determinados personagens e criaram outros especialmente para a atração. Isso funciona bem para a proposta de Sweet Tooth enquanto adaptação, garantido surpresas até mesmo para aqueles que leram o material original. Além de facilitar o envolvimento do espectador com quem está na tela. Sem o traço sujo de Lemire para pontuar esse mundo doente, a produção investe no contraste entre belas locações e os horrores causados pelos principais vilões da história: Os Últimos Homens, liderados pelo cruel general Abbot (Neil Sandilands).
Nas atuações, Christian Convery é o coração da série. O choque de realidade entre sua inocência e o mundo cruel em que ele vive resulta nos melhores momentos da temporada. O ator é capaz de tornar crível o deslumbramento de seu personagem e as atitudes tomadas pela falta de experiência de vida. Nonso Anozie também tem espaço para brilhar, tendo uma carga dramática muito bem explorada ao decorrer dos episódios. Repito, Sweet Tooth funciona justamente pelo foco dado ao crescimento de seus personagens. Sem isso, nem HQ e nem série teriam tanta qualidade.
Em linhas gerais, Sweet Tooth discute e nos faz pensar sobre diversos assuntos. Até onde iríamos para sobreviver? Abriríamos mão de nossa moralidade para salvar alguém que amamos? Ainda que possua diversos paralelos com o atual cenário mundial, a série nos mostra a importância das conexões pessoais e o poder de nunca deixar de acreditar no melhor da humanidade. Pode parecer utópico, mas sonhar nem sempre é algo ruim. Por falar nisso, fica a esperança para que a história de Gus, Jepperd e seus amigos possa continuar por mais tempo. Algo que aquece o coração é sempre necessário.