Novos episódios de O Mecanismo, série de José Padilha que conta os eventos da Operação Lava-Jato (maior caso de corrupção do Brasil), chegaram recentemente à Netflix. No entanto, para poder explicar o que chegou agora, é preciso contextualizar o que se passou antes.
A série estrelada por Selton Mello chegou em sua 1ª temporada causando grande polêmica, muito por uma suposta partidarização do enredo, onde a narrativa colocava falas de um político na boca de outro, como aconteceu com a famigerada fala de Romero Jucá sobre “estancar a sangria” dita pelo personagem análogo ao ex-presidente Lula. Isso gerou diversas manifestações, inclusive com pedido de boicote ao serviço de streaming, nada que tenha gerado grandes prejuízos para a plataforma.
Pelo contrário. Toda a polêmica trouxe bastante divulgação para a Netflix, que certamente capitalizou audiência, que foi conferir O Mecanismo mesmo que por curiosidade.
O problema é que o espectador curioso e ao mesmo tempo crítico deve ter identificado problemas de ordem técnica na série: as narrações em off do detetive Ruffo (Selton Mello), a admiração declarada ao herói Rigo (Otto Jr., o juiz Moro da série), trama confusa e sonolenta e roteiro cheio de clichês.
A 2ª temporada melhora?
Um pouco de melhora ocorre sim. Antes, não dava pra entender direito o que Selton Mello falava. Agora, conseguimos entender a maior parte.
O problema dessa vez é justamente conseguir ouvir o que Selton Mello nos diz. As narrações em off estão ainda mais intragáveis, com reflexões forçadas com citações de poemas de Augusto dos Anjos, tentando dar uma erudição poética pra série que mais causa vergonha alheia. Reflexões como na cena no Paraguai, relacionando o massacre contra o povo paraguaio na guerra a uma pseudo vingança, agora que o país fornece cigarro contrabandeado para os vizinhos (como se nos matassem de câncer no pulmão) são igualmente ridículas.
A câmera da série não ajuda muito, como na cena onde Ruffo tem uma nova revelação sobre o mecanismo e materializa tudo em cartas de baralho. Precisava deixar a câmera girando por tantas vezes (causando desgaste visual), ou será que mostrando aquilo uma vez bastaria?
Na parte política, José Padilha adotou uma espécie de morde e assopra. Primeiro, ele mordeu a esquerda. Agora, luta para deixar evidente que o que aconteceu foi um golpe em relação ao impeachment da presidenta Janete (Sura Berditchevsky, a Dilma da série), mesmo que ainda deixe evidente os erros PTistas. Ao menos, a explicação a partir daí fica um pouco mais clara de como tudo aconteceu, com a trama política entre câmara, STF e planalto se desenrolando.
O Mecanismo de José Padilha
No entanto, sua mentalidade ao lidar com a polêmica gerada pela série pode – ironicamente – ser explicada no pensamento do próprio Ruffo no começo dessa 2ª temporada: “se eu prendo a esquerda, sou fascista. Se prendo a direita, sou esquerda caviar.” Esse julgamento popular pode até ocorrer no dia a dia, mas um personagem articulado como o de Selton Mello ter um pensamento raso assim, é não entender que há muito mais camadas políticas no Brasil. Nesse balaio ainda há outras forçações, como o agente da PF abatido por conduzir Gino (Arthur Khol, o Lula da série) a depor por saber que iria magoar pessoas humildes que votam nele, além da esposa de Ruffo declarando que iria num protesto contra o impeachmet (fala sem nenhuma relação com a personalidade da personagem).
A partir disso podemos falar um pouco mais sobre o Juiz Rigo. Na 2ª temporada ele continua sendo uma figura perfeita, onde passa a errar apenas a partir do episódio da condução coercitiva, motivado por um impulso bem intencionado, uma vez que ele precisava tomar essa decisão para não atrapalhar a ordem de busca e apreensão no sítio.
No final, fica uma leve sugestão de que o tal juiz pode ter sucumbido para as ambições políticas, provavelmente para que José Padilha dê forma às suas recentes críticas ao atual Ministro da Justiça, por seu envolvimento com a família Bolsonaro, que por sua vez está rodeada de desgovernança, contradições e atitudes questionáveis. Sinal de uma 3ª temporada na Netflix?
Se em Game of Thrones estamos discutindo o quanto transformar Daenerys em Rainha Louca é lançar mão de um recurso de roteiro antigo e machista, aqui acontece algo parecido que é o sacrifício do personagem gay, que ganha algum destaque de sua vida pelos roteiristas, que na verdade apenas possuem a intenção de matá-lo para dar mais dramaticidade de modo barato.
O Mecanismo é um produto que capitaliza a partir de um país dividido e que tampouco se afirma tecnicamente. Ao menos, o desfecho possibilita alguns caminhos interessantes que podem tornar a série da Netflix algo mais palatável.