Tomo V – Esfinge: Encarando personagens complexos & enigmáticos

Conta o mito de Édipo que a Esfinge ficava às portas da cidade de Tebas ofertando enigmas aos viajantes e protegendo o trono da cidade após a morte do rei Laio. Era simples: se você acertasse a resposta, você ganhava o trono e a mão da rainha em casamento. Se não, a esfinge o devorava no almoço… ou no jantar. O enigma: Qual criatura caminha no decorrer da sua existência com quatro, dois e três pés?

Édipo chega a Tebas e decifra o enigma: “O homem”, responde o herói que estranhamente se chamava “Pés Inchados”. Tragicamente, o que parecia um acerto se tornou um erro e Édipo, junto do trono, ganhou também a conclusão de sua maldição: depois de inadvertidamente matar o pai acabou voltando ao leito de sua mãe, agora não como filho e sim como amante. Tragédia grega não é pra qualquer um, não é mesmo?

Mas e a Esfinge? Alguns dizem que ela se matou de desgosto depois de ter sido “vencida” por Édipo. Já outros cogitam que ela ainda estaria aguardando nos portões de Tebas por alguém que desvende seus enigmas. Numa cultura cheia de monstros femininos como a grega – vide as sereias, bruxas, górgonas, fúrias e harpias que povoam Homero e outros – a esfinge se destaca em no mínimo um aspecto: Enquanto heróis gregos matam monstros femininos, Édipo é convidado a conversar com ela, questionando seus enigmas & segredos.

Até aqui, uma série de elementos dissonantes: Édipo é um herói identificado mais por sua inteligência do que por sua força e a Esfinge é uma antagonista menos afeita ao embate e mais ao diálogo. Essas características quebram expectativas, normas ficcionais e rótulos associados a ritos de iniciação ou jornadas de aventuras. A estranheza desse mito nos ensina muito, mas neste mês partiremos do que o título anuncia: Personagens Complexos – Como criá-los e desenvolvê-los? Eis o enigma que tentaremos decifrar aqui.

A Jornada do Herói: Seguir a fórmula ou arriscar-se no inesperado?

Pra começar, vamos primeiro deixar de lado um tema que é muito conhecido nos meios de escrita criativa. Preparem-se, pois teremos algumas polêmicas. E se este for o caso, convido os leitores e leitoras a jogarem suas reclamações, discordâncias e opiniões nos comentários. Será ótimo ter uma conversa franca com vocês sobre o Elefante na Sala quando o assunto é criação de personagens literárias: a tão propagada Jornada do Herói.

Eu adorei o livro de Christopher Vogler – A Jornada do Escritor, publicado em belíssima edição pela Editora Aleph – por suas adoráveis ilustrações e informativos diagramas, como também pelas ideias estruturais defendidas nele. Para alguém que deseja compreender a escrita como um ofício, com seus procedimentos e escolhas narrativos, poucos livros no mercado satisfazem tanto.

Elogios como esse estão na resenha que fiz para o Sem Serifa e também minha principal crítica à época: apesar da Jornada do Herói ser um excelente guia para o planejamento de uma história, ele nada acrescenta ao debate sobre escrita, estilo, vozes e ambientação, entre outros temas que constituem o cerne da construção literária. Como vimos na coluna do mês passado, literatura não é apenas enredo, mas também uma série de escolhas estilísticas, que muitas vezes são o principal responsável por continuarmos lendo um livro – ou abandoná-lo.

Um Dos Muitos Diagramas que Ilustram a Jornada do Herói

Hoje,  passado dois anos daquela resenha, vou ainda mais longe em minha crítica. A Jornada do Herói oferta uma fórmula e fórmulas tem lá seu apelo. Elas são confortáveis, elas nos dão confiança, nos fazem acreditar que se usarmos os ingredientes adequados e seguirmos o passo a passo da receita – o bolo ficará delicioso! Só que arte é bem mais complexo do que seguir a receita ou a fórmula.

Como acadêmico, eu desconfio das respostas prontas, das fórmulas simples ou das receitas convencionais. E por mais que tenhamos histórias bem bonitas construídas a partir da Jornada do Herói, especialmente no cinema – que é o principal enfoque de Vogler em seu livro – as obras que nos são mais impactantes e duradouras são aquelas que fogem do Chamado à Aventura, da Proteção e da Morte do Mestre e do Grande Desafio que leva ao Trono e aos Braços da Princesa ou do Príncipe ou à Volta para Casa.

Mas se recusarmos a confortável fórmula apresentada em uma série de filmes e livros que seguem as ideias de Vogler – e antes dele de Joseph Campbell, cujo livro O Herói de Mil Faces inspirou George Lucas à criação de Star Wars –, partiremos de onde? Nas próximas seções, convido vocês a refletir sobre o que torna um personagem – seja ele protagonista, antagonista ou coadjuvante – complexo e atraente para os leitores. Mas adianto: como na vida, não há fórmulas ou regras. Ao contrário. Vamos então à primeira pergunta:

Protagonistas Autônomos ou Escolhidos Autômatos?

Heróis são agentes de mudança sobre o mundo, não partícipes passivos deste mundo. Para buscar uma metáfora retrofuturista: Heroínas pilotam o Zepelim em chamas e impedem o desastre, não são pilotadas por ele. Heróis programam robóticos, não o oposto. Ao invés de “heróis escolhidos” eu prefiro “heróis que escolhem”.  Para Jana Bianchi, autora da fantasia urbana Lobo de Rua (Dame Blanche), o caráter dinâmico e iniciativo de uma personagem é fundamental:

“Pra mim, um bom personagem precisa estar em uma jornada pra realizar algo extraordinário e também precisa ter agência, o ‘tchan’ que faz a história acontecer por causa dele, e não apesar dele. Por ‘algo extraordinário’, me refiro a algo que só vai ser alcançado se o personagem se superar, ir além dos limites normais, o que pode virar tanto uma apresentação de teatro – no caso de um adolescente introspectivo – quanto a batalha épica pra matar o dragão mais terrível do mundo – no caso de um matador experiente de dragões. E a agência é importante porque acho mais fácil me conectar com aqueles personagens que são donos da própria história, que escolhem resolver seus problemas por vontade própria mesmo que role um empurrãozinho – o que (spoiler!) sempre acontece.”

A partir do que Bianchi comentou, como podemos criar um personagem que age sobre o mundo ao invés daquele que está em casa esperando o “chamado”? Em primeiro lugar, é preciso ter em mente a resposta a três perguntas sobre seu herói ou heroína: O que ele/ela é? O que ele/ela faz? O que ele/ela quer? “Nossa, que perguntas mais rasas”, você pode questionar. Sim, elas são simples mesmo, porque a simplicidade é importante. Não coincidentemente as duas primeiras são as primeiras usadas para nos apresentarmos às pessoas ou para que as pessoas nos apresentarem a outras. A primeira pergunta é sobre o nome mas também sobre a identidade, sobre o tipo de ser humano que nosso personagem é. A segunda nos ajuda a entender se o sujeito ou a moça escreve contos, atende balcão, pilota avião, invoca demônios (vai saber!) ou pinta retratos.

Já a terceira pergunta – O que meu personagem quer? – é mais sutil e também a mais importante, pois é ela que se conectará ao conflito de sua história: Desejamos aquilo que não temos e muitas vezes definimos nossa personalidade inteiramente ao redor dessas limitações ou ausências. Possivelmente, a resposta a esta pergunta vai te dar todo o arco dramático do seu conto ou romance.

Vamos testar então? O primeiro exercício deste mês vai nos ajudar a responder a essas perguntas mas de um modo narrativo. Peguem papel e caneta e vamos trabalhar um pouco.

EXERCÍCIO CRIATIVO 7:

O QUE O SEU PERSONAGEM SALVARIA DE UMA CASA EM CHAMAS E POR QUÊ? QUAIS SUAS ROUPAS PREDILETAS? QUAIS FOTOS SERIAM LEVADAS? E QUAIS LIVROS? ELE SÓ TEM UMA MALA E APENAS DOIS MINUTOS ANTES QUE TUDO DESPENQUE EM SUA CABEÇA. ASSIM, QUAIS SÃO OS OBJETOS QUE O DEFINEM E QUE ELE É INCAPAZ DE DEIXAR PARA TRÁS?

Estão vendo porque o “chamado à aventura” é um problema? Direta ou indiretamente ele transfere a responsabilidade do herói para omundo ao redor dele. “Mas e o Frodo, Enéias? Ele foi chamado para a aventura!” Bem… o desejo do Frodo é destruir o Um Anel, mas isso é incidental. Seu verdadeiro objetivo é salvar sua casa. “Hmmm… ok. Mas e o Luke Skywalker? Ele também foi chamado!” Sim, foi, mas se me lembro bem do Episódio IV, o sonho de Luke era viver grandes aventuras e ser piloto da Aliança, bem antes do Império matar seus tios. E de novo: Luke não é boa referência, pois é herói de cinema e eu suspeito que heróis cinematográficos se adequem melhor à Jornada do Herói do que heróis literários, que tem natureza e complexidade diversa.

Além disso, seria bom evitar Rebeldes Sem Causa ou Adolescentes Nauseabundos. O mundo já está cheio de pessoas cansadas, entediadas e frustradas. Não precisamos reencontrar esses tipos na literatura. Ao contrário: lemos livros para buscar inspiração e motivação e não para encontrar confirmação para a loucura que está esse mundo. Se este fosse o caso, ligaríamos o telejornal ou nos deliciaríamos com a linha do tempo do Facebook. Precisamos de heróis como precisamos de ar e por isso personagens atuantes sobre o mundo, apaixonados, determinados e inflamados, são tão necessários.

Jana Bianchi, Rodrigo Van Kampen e Simone Saueressig

Não quero dizer com isso que heróis devem ser perfeitos. Não mesmo. Todos nós adoramos heróis justamente por suas fraquezas, fragilidades e incongruências. Mas o segredo aqui está em buscar esse conjunto de elementos em nossas criações. Além disso, façam seus heróis errar, pois errar, além de humano, resulta em boas histórias. Querem exemplos? “Romeu e Julieta” é sobre pessoas errando no amor. Lovecraft é sobre pessoas indo meter o nariz onde não foram exatamente chamadas e… enlouquecendo. Já nas “Crônicas de Gelo & Fogo” o que temos é um coletânea de erros… alguns bem elementares!

Dos autores que entrevistamos para esta coluna, muitos destacaram os erros como fundamentais ao apelo de seus personagens favoritos. Para Rodrigo van Kampen, editor da Revista de FC e Fantasia Trasgo e do romance Trabalho Honesto (Plataforma Amazon), “o que torna um personagem marcante são seus defeitos. Personagens complexos, falhos, com problemas, tentando lidar com a vida ou com dinossauros gigantes são ótimos. O que é necessário em uma boa história é a verdade. Falo aqui de sentimentos, inseguranças, medos. Coisas que vêm de dentro. O que tem sido bastante desanimador em ficção é o maniqueísmos simples – o bem contra o mal.”

Para Simone Saueressig, autora gaúcha que tem em seu currículo romances como Aurum Domini – O Ouro das Missões (Artes e Ofícios) e Padrão 20 (Besouro Box), personagens contraditórios e falhos muitas vezes são os mais apaixonantes. “O caso mais emblemático é Arséne Lupin, criado por Maurice Leblanc. Ele é ladrão e mulherengo, um cara com uma moral bastante duvidosa. Mas eu adoro a sua personalidade contraditória. Suas atitudes são imprevisíveis, mas Lupin é sempre Lupin, e ele jamais se desvia de quem é: amigo fiel, mente aguçada, coragem e lealdade para aqueles que conquistam seu coração. Ele erra muito, de maneira absurda, em muitas histórias, um sujeito egoísta, machista e mimado, e é isso o que faz daquele personagem de tinta e papel, um cara quase humano. Eu diria, até, que o personagem é melhor personagem, do que seu autor é bom autor, o que é um tanto contraditório, a criatura ser melhor do que o sujeito que a escreve.”

Neste sentido, uma boa análise de nós mesmos e das pessoas que amamos ou admiramos – e o mesmo vale para personagens literários – nos levará a um rico conjunto de qualidades e defeitos. Este conjunto pode ser admirável, engraçado e irritante. Uma boa via é nos concentrarmos no primeiro grupo, dosarmos o segundo e evitarmos o terceiro. Para um autor que trabalha com steampunk e retrofuturismo, é a diferença entre um herói autônomo e repleto de imperfeições, incoerências e deliciosas incongruências e um modelo robótico automatizado por estereótipos, preconceitos ou interesses rasos e artificiais.

Para encerrarmos essa defesa da pró-atividade em ficção, paremos alguns minutos para analisar o porquê de histórias policiais fazerem tanto sucesso: basicamente, é sobre um personagem cometendo um crime – ou seja, forçando o mundo a ser como ele deseja – e outro personagem decidindo persegui-lo, sendo que o mais cômodo e seguro seria ficar em casa curtindo uma maratona televisiva. Ao contrário: simpatizamos com heróis e vilões que partem para o mundo estraçalhando regras e mudando as coisas. E por falar em vilões…

Arqui-Inimigos Malignos, Sidekicks Devotos e Interesses Românticos: Sério?!

Acho que esse subtítulo é bem autoexplicativo, não? O problema de você escrever personagens secundários é que não existem personagens desse tipo na vida. Ninguém neste planeta, por mais perverso, covarde, tímido, discreto ou corrupto que seja, vê a si próprio como vilão, coadjuvante ou par romântico. Nós sempre somos os protagonistas das nossas histórias e temos uma tendência de não raro nos imaginarmos como o heroico centro das atenções.

Em literatura, porém, – que é uma forma artificial de produzir histórias convincentes e não retrato da realidade – precisamos de protagonistas e coadjuvantes. Mas no caso dos três grupos acima, alguns cuidados são importantes – e em 2017, óbvios. Ao menos eu espero que sejam. Primeiro, vilões que querem dominar o mundo ou apenas fazer o mal não funcionam mais. Dê a eles boas razões para serem como são e objetivos criveis e verossímeis para arruinar o herói. Uma boa sugestão é substituir Traumas Terríveis por Ideologias Compreensíveis, por mais que sejam reprováveis.

Quanto aos “sidekicks” ou “best friends”, esqueçam. Primeiro porque melhores amigos que só servem para ouvir lamúrias ou para motivar o herói são irritantes. Além disso, porque tais direcionamentos, além de serem desrespeitosos com esses personagens, fragilizam seus heróis. Sério mesmo que Batman precisa de um moleque de doze anos para socar bandidos? Antes, pense no seu melhor amigo ou amiga e responda a si mesmo: porque que não posso viver sem ele ou ela? Por que essa pessoa é tão importante? A sua resposta vai te ajudar a entender de que modo você deve encarar os demais personagens da sua trama.

Por fim: amor, romance, paixão. Por onde começar? Obviamente todos nós adoramos histórias de amor. A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison é talvez a maior história de amor que eu poderia ter contato. E não se conseguirei contar outra… ao menos não com a intensidade da relação de Louison e Beatriz. Mas em histórias fantásticas, tome cuidado para o romance não virar melodrama ou sentimentalismo tosco. Novelas de televisão já ofertam isso.

Mas isso também não significa que você irá enveredar para o sexo cru, banal e explícito que povoa boa parte das nossas “obras literárias urbanas realistas e sérias”. Tratem o amor e o sexo como você trata o amor e o sexo. Nem como melodrama piegas nem como encontros fugidios e descartáveis. Essencialmente, não há problema algum em nenhuma dessas posturas, mas elas estão longe de configurar cenas literárias interessantes e só o que deve nos interessar aqui é isso, indiferente das condutas de qualquer um quando as luzes se apagam.

Sempre brinco que infelizmente não temos uma linguagem para o sexo, ao menos não em língua portuguesa, sendo a experiência erótica reduzida a manual de biologia – pênis, vagina, uretra, clitóris, etc. – ou à conversa machista de boteco – pau, buceta, cu, grelho, etc. Fica aqui o desafio de pensarmos numa forma de tratar de sexo e erotismo com um vocabulário mais sofisticado e/ou cuidadoso. Eu particularmente estou sempre pensando nessa limitação imaginativa, e portanto existencial. perceptível na limitação do nosso discurso.

Para finalizar esse tópico, não poderíamos deixar de falar sobre estereótipos femininos. É sabido que a sociedade patriarcal ocidental multiplicou as puras e as putas do decorrer de sua história, sendo as personagens femininas ora representadas como salvadoras ora como femme fatales. Em literatura, das duas uma: ou elas levam os homens à perdição ou então elas estão lá, pobres e indefesas, esperando os bons salvadores, afinal são o “sexo frágil”. Convenhamos: do que sei de mim e do que sei dos homens que eu conheci, nós é que somos os frágeis dessa história – em nossa ignorância, em nossa incapacidade de suportar dor física, em nossa covardia transmutada em comportamentos controladores e preconceituosos.

Então, que tal deixar de produzir histórias em que nós salvamos elas e inverter a fórmula? E se você acha que inverter a fórmula também tem seus riscos – e eu acredito que sim – por que não deixar que cada um resolva seus próprios assuntos ou então que juntos possam resolver um desafio, um confronto, uma situação de perigo? Uma das críticas feitas à “Lição de Anatomia” foi essa: na minha vontade de produzir “personagens femininas fortes” – outra expressão equivocada, e agradeço à Nikelen Witter pela correção – acabei multiplicando mulheres altissonantes e talvez irreais. Tenho a meu lado o argumento de que o livro é escrito em primeira pessoa, o que tiraria a responsabilidade dos meus ombros e a alocaria nos dos personagens que produziram aqueles discursos. Mesmo assim, recado anotado, pois penso que refletir sobre isso seja o mínimo que heroínas como Vitória, Beatriz e Rita esperariam de mim. E isso é só o que preciso para reavaliar minhas posturas sobre esse e outros assuntos.

Patrícia Baikal, Mario Bentes e Diogo Andrade

Outros autores refletem sobre o que torna um personagem desinteressante. Patrícia Baikal, por exemplo, autora de Mariposa (Editora Kiron) e do blog Palavras de Bandeja, defende que “um personagem marcante é aquele que me surpreende de alguma forma, seja pelo seu entusiasmo, bom humor, eloquência e que, no seu percurso heroico, erra e acerta, como todo ser humano – só assim, há uma identificação entre o leitor e o herói.” Baikal também adverte quanto à presença de cenas do dia a dia na ficção: “A meu ver, uma história bem construída não fala de coisas banais o tempo todo – ‘acordei, tomei café, escovei os dentes e fui trabalhar’ –, afinal, já vivemos isso no dia-a-dia. Um personagem que passa o dia todo assistindo à TV, por exemplo, pode ser um gancho para desenvolver uma história sobre um herói em depressão, mas isto me aborrece profundamente, assumo, e não sigo com a leitura.”

Segundo Mario Bentes, autor amazonense de A terra por onde caminho (Editora Schoba) e Minhas conversas com o diabo (Lendari), o problema de muitos exemplares de ficção fantástica é a superficialidade de seus personagens, sejam eles protagonistas ou coadjuvantes: “Personagens marcantes são aqueles que dialogam com o leitor, que possuem elementos subjetivos ou caracteres arquetípicos com os quais podemos nos identificar. Somos um misto de subjetividades e complexidades, e personagens também precisam sê-lo para não correrem o risco de parecer inverossímeis. Nesse sentido, o que mais me encanta é reconhecer que o personagem poderia ser uma pessoa comum independente do contexto que ele está inserido na narrativa. Ao mesmo tempo, o que me aborrece é perceber que um personagem é vazio, apenas uma casca.”

A partir disso, uma sugestão: por mais que você ame seus protagonistas, dedique a mesma energia ao background, motivações e vivências dos demais personagens. Shakespeare e George Martin estão aí para nos mostrar que histórias fantásticas podem ser contadas nublando a identidade de seus protagonistas. Talvez isso seja mais válido para o segundo do que para o primeiro, mas ambos dedicam o mesmo respeito, a mesma simpatia, o mesmo espaço humano e coerente a todas as suas criações, sejam eles reis ou mendigos, jovens ou velhos, heróis ou vilões. Não é à toa que Martin admite dever bem mais a Shakespeare do que a Tolkien.

Por fim, abrace a mudança como a principal qualidade de um personagem

Bons personagens mudam, uma regra que serve tanto para protagonistas quanto para coadjuvantes. Se nós mudamos a cada dia, para não dizer a cada hora, por que nossos personagens, não mudariam? Essa é uma limitação das séries quadrinísticas comerciais, por exemplo. Batman e Superman serão sempre os mesmos e por isso depois de um ano de leitura, não aguentamos mais conviver com eles. Batman ainda tem a seu favor uma galeria de vilões incríveis ao passo que o Superman, nem isso.

Para o carioca Diogo Andrade, autor de A Canção dos Shenlongs (Plataforma Amazon), esse é o perigo de personagens muito poderosos ou muito inteligentes: “Um personagem marcante é aquele que gera empatia, com o qual conseguimos nos identificar de alguma forma ou em algum nível. Reconhecer nele nossas próprias dificuldades, fraquezas, angústias ou alegrias. A superação de uma limitação é sem dúvida o que me motiva a acompanhar o herói. Gosto de vê-lo transpor seus limites, enfrentar desafios que nunca antes havia enfrentado, cair, apanhar, mas não desistir, crescer e, finalmente, vencer  – ou não, dependendo do que se quer alcançar com a história. De uma forma ou de outra, o caminho deve ser de descobertas sobre si mesmo e sobre o mundo. Histórias em que o herói alcança seus objetivos de forma fácil, ou sempre sabe de tudo, sem qualquer desafio, não me atraem.”

O problema de personagens muito admiráveis é justamente a dificuldade em produzirmos alterações em seus percursos dramáticos. Em “Lição de Anatomia”, vivenciei isso com Louison e Pedro, dois personagens criados a partir de estereótipos bem conhecidos do público: o vilão inteligente e o policial durão e honesto. A solução que encontrei para alterar o primeiro foi alocá-lo no Asilo São Pedro e alquebrá-lo tanto física quanto psicologicamente, tendo a certeza de que ele nunca mais voltaria para seu mundo, seu lar, sua rotina.

Já com Pedro foi menos complicado, pois desde o início eu sabia que um dos arcos do romance seria justamente questionar uma justiça monocromática e extremista dando-lhe tons e sobretons cinzentos e ambíguos. O mesmo pode ser dito do jornalista Isaías Caminha, que começa o livro como um ingênuo impressionado – especialmente na presença de mulheres! – e termina dando indícios de um amadurecimento tanto pessoal e social quanto imaginativo.

Vamos tentar agora nos exercitar nisso? Ao planejarem nossos arcos de personagens, vamos tentar seguir a seguinte progressão: 1) Quem nosso personagem era no início da trama; 2) Quem ele se torna no decorrer do desenvolvimento dela; e 3) Quem ele se tornará ao seu término. Na prática:

Menino Ingênuo > Adolecente Abandonado > Adulto Precoce

ou então

Menina Estudiosa > Jovem Desiludida > Mulher Autoconfiante

Parece simplista? E é! Mas trata-se de uma estrutura básica e inicial que nos ajudará a compreender melhor nossos personagens e o percurso deles no decorrer do arco dramático. Este será justamente o desafio do exercício que encerra a coluna de hoje.

EXERCÍCIO CRIATIVO 8:

PENSANDO NA PROGRESSÃO ACIMA, CRIE EM LINHAS SIMPLES O PERCURSO DRAMÁTICO DO SEU PERSONAGEM, DO SEU ANTAGONISTA E AO MENOS DE DOIS COADJUVANTES.

E agora, vamos ao grand finale. Com vocês, Figgie!

A Esfinge Riot Grrrl Figgie, de Jessica Lang

Porque a Esfinge cansou de esperar!

Lembram de Édipo? Ele se deu mal. Achava que sabia tudo e que controlava o céu, a terra e a si próprio. Acabou mendigando pão, morrendo cedo e ferrando com a vida de seus filhos. E quanto à Esfinge? Primeiro ela se deu conta de que Sphinx – da palavra grega que significa Sufocadora – não é um bom nome. Então assumiu outro, algo mais moderno, simpático e interessante: Figgie. Cansada de esperar nos portões de Tebas por homens que decifrassem seus enigmas – como se ela precisasse disso… – ela deu o fora e saiu pelo mundo, conhecendo lugares, encontrando pessoas e aprimorando seu gosto musical!

Depois de séculos e séculos, chegou a hora de chutar o balde, especialmente porque enquanto ela tinha mudado, os homens ao seu redor nem tanto. Então, ela virou punk e anarquista, mudou o corte de cabelo e tatuou em seu corpo alguns signos bem interessantes. Vocês acham que a Esfinge grega era inquietante e enigmática? Preparem-se então para Figgie e sua atitude Riot Grrrl: diante dela, não serão só os tebanos que sairão correndo!

Um abraço a todos vocês & nos vemos na coluna do próximo mês, quando discutiremos várias possibilidades para estruturar nossa história. Se gostar da nossa coluna, compartilhe esse texto e indique aos seus amigos & amigas.

Enéias Tavares é criador de Brasiliana Steampunk (Editora LeYa) e coautor de Guanabara Real – A Alcova da Morte (Avec), duas séries literárias ambientadas em um Brasil retrofuturista. É também um dos coordenadores do projeto Bestiário Criativo e professor de Literatura Clássica na UFSM. Nas poucas horas vagas, cozinha, corre e cuida das suas duas panteras domésticas, além de coordenar o projeto Fantástico Brasileiro, uma história da Literatura Fantástica no Brasil, ao lado de Bruno MatangranoJessica Lang, a artista responsável pela adorável Figgie e por outras criaturas deste bestiário, é designer e uma das criadoras da web comic Metalmancer, ao lado de Andrio Santos. Neste texto, Tavares confessa: todo o background Riot Grrrl da nossa Esfinge… foi criação dela!