Foi com muita tristeza que recebi a notícia de que Kentaro Miura nos deixou, aos 54 anos, em decorrência de problemas cardíacos. Um artista de mão cheia, que sem dúvidas acrescentou demais ao meio cultural, principalmente pela sua obra máxima: Berserk.
Nunca fui um otaku dos mais dedicados, mas passei boa parte da minha juventude lendo e colecionando alguns mangás como Samurai X, Shaman King e Blade: A Lâmina do Imortal. Como eu disse, não foram muitos.
Mas Berserk esteve presente fortemente em minha vida nesse período, quando o mundo parecia mais simples e uma boa dose da estilizada violência do mangá animava minhas leituras nos intervalos do trabalho. Rapidamente, o mangá publicado até então pela Panini alcançou as publicações no Japão e fiquei (juntamente com outros leitores) chupando o dedo por mais histórias de Guts e desse mundo fantasioso inspirado na Europa Medieval. Um universo pra lá de inóspito, digno de outros como Westeros de Game of Thrones, para ficar num exemplo irônico.
A ironia se dá por conta do autor da franquia literária As Crônicas de Gelo & Fogo (que rendeu a série televisiva de maior sucesso de todos os tempos) George R. R. Martin sofrer do mesmo tipo de perseguição que Miura sofreu por parte dos fãs: a demora e possível falta de desfecho para suas obras, uma vez que os autores podem falecer e as histórias não terminarem. No caso de Martin, há anos que os fãs esperam pelos dois últimos volumes, ao passo que o escritor está com 72 anos, atualmente.
É um pensamento até que legítimo, pois como bons entusiastas de conteúdo artístico, ficamos ansiosos por produtos de qualidade – e Berserk é um prato cheio nesse sentido.
Quem acompanha o mangá desde o início pode notar a evolução artística de Miura, e o resultado são traços incríveis que ilustram a arquitetura (com os castelos medievais), o misticismo (demônios e tantas outras divindades) e os combates (tanto de exércitos quanto individuais) que eclodem em sentimentos como dor, ódio, paixão e desespero. Tudo isso para retratar a maior virtude do seu protagonista: a fúria. Guts é um personagem inconformado e imparável, que resgata algo perdido na sociedade contemporânea, e reside aí o maior trunfo da vida inteira de Miura como autor, na minha humilde opinião.
O final de Berserk
E com a morte do mestre Kentaro Miura, automaticamente acabam surgindo comentários a respeito desse não término da obra. No entanto, falar sobre esse tema logo após seu falecimento é, no mínimo, indelicado com quem o admira – pra não dizer desrespeitoso (eu mesmo estou andando na corda bamba com esse texto). Pois um autor ou uma autora não são máquinas de escrever, mas sim seres humanos com seus dilemas, suas virtudes e seus defeitos. Não levar isso em conta faz do acusador uma pessoa egoísta, e até ignorante a respeito da obra em questão.
E quem disse que Berserk não teve um final? Como dito pelo youtuber Evandro Fuzari em seu vídeo no Canal MangaQ, Miura já tinha revelado em entrevistas que Guts teria um final feliz, ou seja, havia um alento para esse personagem após ter uma das vidas mais sofridas possíveis – tanto no mundo real quanto além. Pra mim, isso é bastante para perdoar qualquer imponderabilidade da vida, que não permitiu ao autor expandir ainda mais sua magnum opus. O que fica é o impacto causado de uma história dotada de inspirações e finesse, mas, ao mesmo tempo, extremamente cruel e brutal.
Claro que não ficarei surpreso caso apareça algum rascunho do seu roteiro, onde alguém possa finalizar a história. Mas não seria a mesma coisa. Não seria o final do próprio autor.
Já perdoei editoras como Conrad e JBC várias vezes por se adiantar demais na periodicidade de seus mangás, então, não é com Kentaro Miura, um cara que embalou minhas emoções por diversas vezes, que vou me estressar agora. Com ele, o sentimento é apenas de gratidão, carinho e admiração.