Estamos em uma era saturada de super-heróis. Depois que o MCU começou de verdade, o mundo nerd/geek se expandiu e agora temos facilidade em ler sobre nossos(as) heróis(heroínas) favoritos(as) sempre que pudermos, ou assistir, pois não faltam filmes e séries com essa temática. Com o lançamento de Invencível, achei que seria mais um, e ele acabou me provando que eu não só estava errada, como dá para explorar ainda mais esse universo poderoso.
A premissa é simples: temos um adolescente com um pai superpoderoso que deseja ser como ele, uma equipe de super-heróis famosos e outras equipes menores, por pessoas mais novas. Nada de novo sob o sol. Porém, o que não esperávamos é que a série faria vários paralelos e “homenagens” a personagens que já conhecemos, e colocaria tudo isso sob uma nova perspectiva. Há muita violência gráfica, de maneira que chega a ser gore, mas bem utilizada – afinal, se um ser poderoso dá um murro em uma pessoa, ela não vai só cair para trás, no mínimo arrebentaria os ossos do rosto dela. E esse super-realismo é colocado para nós da forma mais pura, e, ao invés de termos uma série leve sobre super-heróis, com algumas questões humanas, o que recebemos é uma animação poderosa, pesada, que trata de temas filosóficos profundos que muitos evitam até mesmo pensar sobre. Perguntas como “o que é ser humano?” e “o que o torna um herói?” são as mais comuns, mas ela aborda muito, muito mais.
Invencível e o dilema adolescente
Sobre o protagonista, Mark, ou Invencível, ele começa sendo apenas mais um adolescente frustrado porque seus poderes não surgiram ainda. Seu maior sonho é ser um herói como seu pai, poder voar, tem superforça e toda a glória e aclamação que vem. O bom e velho tema juvenil de se sentir especial, único. No primeiro episódio, as coisas acontecem tão rapidamente, que fiquei levemente entediada… Até o pós-créditos. Aí a série me pegou. Mas vamos focar em Mark.
Seu pai não é humano, ele vem do planeta Viltrum (e aqui podemos lembrar do Super-Homem), onde todos são superpoderosos e ele clama que está ali para proteger a Terra. Com uma família bem estruturada, pais amorosos, Mark cresce em um lar “normal” e tem até um momento em que determinado personagem diz que ele não conhece a realidade porque é branco e privilegiado, o que é verdade. Mark esperava que, ao receber seus poderes, fosse tudo muito fácil, pois seu pai faz parecer que é assim.
Normalmente, em quadrinhos, quando um personagem ganha seus poderes, o aprendizado é fácil e chega a parecer, de certa forma, natural para ele ter aquele poder todo. Temos exceções, e eu sei que você pensou nisso, e Mark é uma delas. Apesar de saber voar e ter uma força incrível, o protagonista não sabe usá-los e precisa ser treinado pelo pai.
Logo de cara, Mark descobre que pousar não é tão fácil quanto imaginou, ou até mesmo voar em uma velocidade sobre-humana. Já vimos isso em, por exemplo, o primeiro filme do Homem-Aranha do Sam Raimi, a Capitã Marvel (do filme), a Miss Marvel (quadrinho) ou o Aquaman (filme live action). Sair de uma pessoa “comum” e receber poderes do nada merece sua parcela de treinamento. Entretanto, mesmo com isso, temos outra construção maravilhosa: a do adolescente empolgado.
Mark é só um garoto. Ao receber o que sempre quis, ele fica maravilhado. Quer voar para todos os cantos, se acha capaz de derrotar qualquer vilão possível, já que começou com os mais “fáceis”, literalmente, o protagonista passa a se sentir invencível. Agora, um ponto tocado que achei incrível é que, mesmo sendo “invencível”, Mark não utiliza seus poderes contra humanos, como a cena do seu bullier batendo nele e, de maneira alguma, ele revida. Ao contrário, o protagonista manda ele bater mais forte. Claro, é um ato de arrogância adolescente, porém, ele ainda não levanta um dedo contra o cara, pois tem a consciência de que, além de não se machucar com os golpes de um ser humano “comum”, ELE é quem poderia ferir o outro.
Traçando esse paralelo com o Homem de Aço, em uma de suas histórias (não me lembro qual agora), um Clark adolescente, que sempre sofria bullying, questiona seu pai sobre o motivo de ele não poder revidar. Afinal, ele era mais poderoso do que qualquer um ali e o deixariam em paz. Ao que Jonathan Kent responde que é exatamente esse o motivo. Se Clark é mais poderoso do que eles, é certo que ele use isso contra essas pessoas? Quais os reais benefícios que esse ato traria a ele? Você pode pensar: “Ah, mas o deixariam em paz.” Certo, mas isso também não inspiraria medo? Sabemos que a humanidade tem medo do desconhecido. Clark ficaria sozinho, seria o diferente. Por isso que, na vida adulta, ele passa a ter uma identidade secreta. O Super-Homem é praticamente um deus, sendo que sua criação foi completamente humana. Não é somente um alienígena. É um morador do planeta Terra, um humano em sua essência, da mais pura forma. E, assim como Clark Kent, Mark tem essa consciência. Ele foi criado na Terra, uma criação 100% humana, mesmo que seu pai não fosse humano. Nolan não o criou como um viltrumviano.
Sendo assim, apesar do Omni Man ter sido ligeiramente inspirado em Super-Homem, o verdadeiro Super-Homem da série é Mark e seu alter ego, Invencível. Ele é ingênuo (tanto que, em sua primeira batalha contra inimigos poderosos, ele congela), inocente, otimista, leal às pessoas, apaixonado por sua família e todo o conceito de salvar pessoas, poder protegê-las de coisas ruins. Assim como o Homem de Aço, possui uma consciência moral humana que o impede de usar seus poderes contra pessoas mais fracas. Invencível não quer matar. Ele só quer proteger e salvar. A exemplo de quando ele e Eve Atômica vão lutar contra o Doutor Sísmico e Mark tenta evitar que ele caia no meio da lava.
O protagonista também me lembrou o Kick Ass, que acreditava piamente que ser super-herói era só sair na rua e impedir crimes de acontecerem. Em teoria, parece muito fácil. Na prática? O resultado é o hospital, mesmo para o Invencível, que é quase indestrutível. Ambos são idealistas, que acreditam no bem e em salvar a humanidade, e em auto-sacrifício. Quantas vezes eles vão apanhar em prol da boa causa? Não se sabe.
Apesar disso, em vários momento Mark se questiona sobre ser super-herói, pois tudo começa a parecer complicado demais. É necessário estar apto a matar, em mentir para manter uma identidade secreta, fazer diversos sacrifícios. Ele só tem 17 anos, e se sente preso em responsabilidades morais que não era exatamente o que queria. Invencível queria ser reconhecido, aclamado, ser o salvador. Quando falha e congela, se culpa, se põe para baixo. Percebe seus erros, e passa a não querer cometê-los novamente, o que lhe dá muito medo e vontade de se afastar de tudo aquilo, ao que Eve Atômica replica que ela, com os poderes que tem, sabendo que pode salvar alguém, não conseguiria ficar parada. Mark até tenta negar e dizer que conseguiria, para logo em seguido mostrar que, não. Jamais ficaria parado se pudesse salvar alguém.
E tudo isso vai contra o que seu pai, Nolan, ou Omni Man, quer para ele.
Omni Man e a visão de um deus sobre a humanidade
Uma das primeiras coisas que descobrimos na série é que o Omni Man é o super-herói mais poderoso da Terra. Apesar de haver um grupo de heróis que também possuem boa quantidade de poder, Omni Man não se junta a eles e obviamente é mais poderoso do que todos ali. O que se prova também no primeiro episódio, no pós-créditos, ao assassinar todos eles a sangue-frio. Claro, ele quase morre nessa empreitada, tamanho seu ego ao enfrentar todos ao mesmo tempo, mas ainda vence.
Passamos a série inteira nos perguntando seus motivos, seguindo as mesmas pistas que os outros personagens que faziam perguntas iguais. Começamos com uma certa admiração pelo modo como ele trata a família, os amigos e salva o mundo, e, então, à medida que os episódios vão passando, tudo o que surge no lugar é asco, é raiva, é a mesma vontade de todos que sabem sobre o que ele fez: saber o porquê.
Nascido em um planeta eugenista, chamado Viltrum, Nolan conta a Mark que ele TEVE que matar aqueles considerados os super-heróis mais fortes, depois dele, pois o planeta estava marcado para ser dominado pelo seu povo, que levaria tecnologia avançada, melhorias, entre outras coisas. E se o a população da Terra resistisse, sofreria retaliação até se render ou ser obliterada. Como humanos, só podemos ter raiva da ideia de sermos governados por uma trupe desconhecida de alienígenas ditatoriais, porém, se vermos pelos olhos do Omni Man, ele está correto em suas convicções. E antes que me matem, vamos aos fatos.
Como dito, seu planeta é eugenista, onde a lei do mais forte é levada ao pé da letra. Eles assassinam seus conterrâneos considerados mais fracos até que reste somente os mais fortes. Com isso, tonam-se uma potência universal que conquista planetas, eliminando “raças” inteiras que ousam se opor e dominando os que se renderam, levando o que eles, os viltrumvianos, consideram como sendo o melhor para aquele lugar. Com o tempo, o número de viltrumvianos foi diminuindo e criou-se um novo plano para expandir o seu império. Escolheram planetas e enviaram apenas um deles a cada um para que preparassem o terreno para a inevitável ocupação.
Os nascidos no planeta Viltrum são mais rápidos e fortes, praticamente indestrutíveis, do que quaisquer outros povos. Eles também vivem por muito mais tempo. Omni Man explica para Mark que o sangue dele é tão puro, que ele é praticamente 100% viltrumviano, que seu sangue humano é sobreposto pelo da “raça superior”. E ele é completamente devotado à sua causa, tendo esperado apenas seu filho descobrir se iria ter poderes ou não para, juntos, dominarem a Terra e trazerem melhorias a esse povo que ele considera como sendo inferior. Tem até uma fala muito forte em que Nolan declara que sua esposa, Debbie, é mais como uma bicho de estimação do que alguém que realmente importa. Ela é inferior. Ela é apenas humana.
Omni Man, na Terra, é praticamente um deus. Não há quem possa derrotá-lo (talvez Mark, num futuro em que ele tiver dominado todos os seus poderes). E sua criação não foi voltada para a piedade, o amor ao próximo, ou minimamente… Humana. Ele nasceu, cresceu e se desenvolveu em um planeta que acredita que somente o mais forte deve viver, que o resto deve obedecê-los. E deixa claro que Nolan está vivo há centenas de anos, então, 20 anos na Terra, para ele, é praticamente nada. Para nós, 20 anos é MUITO tempo. Para Omni Man? Nada.
Então, veja só, do ponto de visto dele, não está fazendo algo errado. Por centenas de anos, Nolan viveu de uma determinada maneira, do qual se orgulha muitíssimo, e cansou de brincar de casinha. Hora de voltar para a sua missão e agir conforme o seu dever demanda. Ele é um soldado, orgulhoso de sua pátria, pronto para arriscar tudo por ela. Perceba, para nós, humanos, os animais são inferiores, eles não possuem o nosso intelecto. Os dominamos, criamos, capturamos, matamos ao nosso bel-prazer. Para o Omni Man, nós somos os animais inferiores, vidas que não importam, criaturas frágeis e sem esperança. Por que ele deveria ter pena? Por que ele não iria continuar a sua missão? Seus anos em nosso planeta não mudaram a sua visão sobre a fragilidade humana, a fraqueza, a inferioridade. Na verdade, reforçaram. Sua raça é, incontestavelmente, superior.
Nesse embate, Invencível vs Omni Man, quem está correto?
Analisando friamente? Os dois.
Novamente, Mark, assim com o Super-Homem, foi criado como humano, com nossos valores, criando vínculos afetivos, amorosos. Ele tem defeitos, medos, inseguranças de um adolescente. Mark é puramente humano, mesmo que seu sangue o aponte como viltrumviano. Nolan, por outro lado, foi criado para conquistar, para ser o mais forte, o mais rápido e o melhor. Seus valores são outros. Não nasceu em um planeta envolto dos nossos mantos de hipocrisia sobre ter compaixão, amor ao próximo, gentileza etc etc. Então, por que diabos ele deveria seguir esses preceitos que, muitas vezes, nós mesmos não seguimos? Aquele não é o seu povo, não é o seu planeta. Ele observa a humanidade de cima e vê que precisamos do seu pessoal para sair do buraco em que nos enfiamos.
Omni Man, no final das contas, estava correto. Mas Invencível também. Cada um em sua visão, em seu modo de ter sido criado, em sua filosofia pessoal.
E nos últimos segundos entre pai e filho, vemos que Nolan aprendeu algo: a amar o próprio filho. Com relutância.
Esse tipo de narrativa não é comumente explorada. Claro, há um que maniqueísta na série, em que Nolan é sempre chamado de assassino (o que, de fato, ele é), cruel, tirado, enfim… Tirando o lado da história em que poderíamos entender de verdade o Omni Man. Precisa de muita atenção para perceber esses detalhes sobre ele, pois sua história real é contada muito rapidamente. É necessário entender as nuances da conversa entre pai e filho, principalmente na parte em que ele MOSTRA a fragilidade e a inferioridade humana para Mark da PIOR maneira possível.
Na cena do metrô, é quase impossível não lembrar da cena em Homem-Aranha 2, de Sam Raimi, com Peter Parker salvando as pessoas, dando tudo de si para isso. Este é um personagem que aprendeu da pior maneira que, com poderes, vem grandes responsabilidades, e cometeu diversos erros que causaram a morte de pessoas amadas, como a do tio Ben e da Gwen Stacy. Omni Man tenta ensinar essa lição a Mark, mas as responsabilidades que ele aponta são para com o seu povo de Viltrum e não da Terra, e usa seu próprio filho para massacrar diversas pessoas, em que ele segura Invencível – que não receberia muito impacto – em frente a um metrô e simplesmente o deixa passar por entre eles. A cena é pesadíssima, em que vemos pedaços de pessoas para todos os lados. Tudo isso para que Nolan pudesse provar o seu ponto. Que, ainda assim, Mark se recusa a aceitar.
Existem tantos paralelos na série Invencível com histórias de outros super-heróis, como uma crítica ou uma caricatura, que eu teria que escrever um livro sobre. Mas o ponto é outro. E no fim dele, ambos estão corretos. Como diria Einstein: tudo é relativo.