Rei Artur talvez seja o monarca mais famoso no mundo inteiro e que talvez nem tenha existido. Há milhares de versões sobre a sua história e essa NÃO é mais uma. Dessa vez, é sobre alguém que faz parte dela: Sir Gawain. A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight, 2021) foi baseado no poema Sir Gaiwain e o Cavaleiro Verde, mas, obviamente com a visão do diretor – que modificou horrores a história original para fazer sua própria versão e, spoiler, ficou incrível.
Antes de tudo, gostaria de dizer que o filme traz MUITOS símbolos, muita metalinguagem e todo tipo de coisa no qual é necessário extrema atenção e faria com que esse artigo se tornasse maior do que já é, então focarei em Gawain e sua jornada. Se necessário, no que acontece ao seu redor, se o fato for importante para o arco principal.
Dito isso, SIMBORA!
O código dos cavaleiros medievais
Os cavaleiros medievais seguiam um conjunto de regras, um código pré-estabelecido, que, se você completasse a tabelinha, BINGO, você era um verdadeiro cavaleiro. Ele segue uma premissa de 5 itens, que são representados,em A Lenda do Cavaleiro Verde, pelo medalhão que todos os cavaleiros de Artur usam, inclusive o próprio, e o símbolo talhado no chão do salão, sendo este uma estrela de cinco pontas, no qual cada ponta representa uma virtude diferente: generosidade, castidade, amizade, cortesia e devoção.
Aliás, o número 5 tem uma importância na história, e ele está presente em diversos momentos, sendo repetido quase à exaustão. Mas, como não é tão relevante para a jornada principal, sendo mais um simbolismo extra, deixo com vocês.
Aqui, Gawain é sobrinho de Artur, filho de Morgana, e seu único herdeiro, pois, como sabemos, o grande rei e Guinevere nunca tiveram filhos. Os primeiros minutos do filme são gastos em cenas que nos contam o necessário para entendermos quem vamos acompanhar. Gawain não é um cavaleiro, mas seu desejo “supremo”, por assim dizer, é se tornar um. PORÉM, nada faz para que isso aconteça, repetindo para si a falácia de ainda ter tempo. Ele é passivo, irresponsável, nunca teve dificuldade alguma na vida e não tem pudor ao usar as pessoas ao seu bel-prazer – como é o caso de Essel, que não é DIGNA do seu amor. Uma prostituta não pode casar-se com o herdeiro do trono, ela não é boa o suficiente.
No cenário do jantar com o rei e seus cavaleiros, a mesa que deve ser a Távola Redonda é, na verdade, um semicírculo, o que revela algo extremamente curioso. Na lenda arturiana, a cadeira que fica exatamente em frente a de Arthur é proibida, em que somente o escolhido irá sentar e quem tentar e não o for, vai morrer na hora. No filme, ela é inexistente por conta do formato da mesa. Logo, nesse mundo, não nasceu e não nascerá alguém digno de sentar-se em tal lugar, o que fala muito sobre a realidade daquela dimensão – as virtudes são apenas acessórios que os cavaleiros vestem para parecerem ser honrados e nobres.
O salão de Artur é escuro e passa a sensação de ser um tanto quanto claustrofóbico – os enquadramentos são fechados, dando a ilusão de que o espaço é pequeno e opressor. Além disso, há uma predominância das cores frias nas cenas, evocando sensações de melancolia, e é como se estivesse o tempo todo enevoado – ou seja, não há como se ver o ambiente com clareza, assim como a realidade de Camelot.
Aliás, falando em cores, Gawain chega em uma roupa branca, e esta pode representar os sentimentos do jovem por estar em um salão repleto de lendas e patamares que lhe parecem inalcansáveis, ou relativa à sua ingenuidade. Fica aqui a interpretação que você preferir.
Falando em cores, em sua partida para a aventura, ele usa um peça de roupa que estará praticamente em todas as cenas, uma espécie de manto amarelo – cor muito ligada à covardia e à hipocrisia. De acordo com o diretor, também há uma ideia de riqueza, possivelmente para reforçar quem ele é até então.
Em uma conversa significativa do protagonista com o rei e a rainha, Artur pede que Gawain lhe conte uma história sua, pois quer conhecê-lo melhor. O jovem baixa os olhos, envergonhado, e replica que não tem uma para contar – o que dá logo a deixa para o que vai acontecer.
O rei então aponta na direção de seus cavaleiros e pergunta o que o sobrinho vê. “Lendas”, é a resposta, palavra esta que significa “narrativa de caráter maravilhoso em que um fato histórico se amplifica e transforma sob o efeito da evocação poética ou da imaginação popular“. Mais à frente, Gawain será acolhido por um Lorde e sua Senhora, tendo essa última um diálogo interessantíssimo com o rapaz. Sua casa é repleta de livros, a maioria escrita por ela com narrativas que chegaram aos seus ouvidos ou apenas copiando de livros antigos que necessitavam de restauração. E, sem o menor pudor, lhe confidencia que, quando se vê numa situação em que pode melhorar a história, o faz. Mais à frente ainda, Gawain vai passar por uma provação em que ele ouvirá de um amigo que, se desistir ali, ninguém ficará sabendo. O jovem poderá contar a versão que quiser dos acontecimentos e ninguém saberá da verdade, que ele desistiu no último momento.
É quase um inception de narrativas dentro do filme, mostrando que muito do que se sabe são apenas palavras ao vento, vazias e sem significado real, pois pode-se dizer o que quiser, mudar as histórias aumentando-as ou melhorando-as. É assim que realmente nascem as tais lendas. De histórias boca à boca, não de fatos – aqui posso citar facilmente A Ilíada e A Odisséia, que não há registro algum de Homero e essas histórias foram, por anos, contadas apenas de boca a boca, pois a escrita não tinha chegado à Grécia. Mas, para Gawain, um rapaz ingênuo e sem experiência de vida, não é assim. Ele acredita que a honra é algo a ser conquistado por meio de aventuras e não, como diria Essel, sendo uma pessoa boa.
Com a invocação do Cavaleiro Verde ao salão – por Morgana, a mãe de Gawain -, este propõe um jogo ao seu anfitrião: “Ó Grande Rei, satisfaça-me com esse amigável jogo de Natal. Que qualquer um dos seus cavaleiros, do mais ousado de sangue ao de coração mais selvagem, avance e pegue sua arma, e tente com honra desferir um golpe contra mim. Quem quer que me acerte, deve reinvindicar isso que está em meu braço. A glória e a riqueza serão tuas. Mas o campeão deve aceitar os seguintes termos: se ele acertar o golpe, daqui a um ano ele deverá me procurar na Capela Verde, seis noites ao norte. Ele me encontrará lá, se ajoelhará e me deixar atacá-lo de volta. Seja um arranhão na bochecha ou um corte na garganta, devolverei o que me foi dado e, então, com confiança e amizade iremos nos separar. Quem, então, está disposto a se comprometer comigo?”
No conto original, Artur mantinha um hábito de somente iniciar suas refeições após ser entretido com alguma história de feitos fabulosos ou “ou sem que antes algum desafiante concitasse um de seus cavaleiros a com ele lutar, arriscando um e outro suas vidas, à mercê da fortuna.” (Fonte: Senna, Marta de. Sir Gawain e o Cavaleiro Verde. 2012). O Cavaleiro Verde aparece e traz exatamente o que o rei pedia, porém, ninguém ali move um dedo – o que é irônico, visto a quantidade de cavaleiros que são lendas ali (no conto original, o Cavaleiro Verde fica putaço com isso), exceto o jovem Gawain que, em um ímpeto cheio de falsa bravata, aceita a proposta do Cavaleiro. Das mãos do próprio Artur, o rapaz recebe Excalibur, que o avisa que é só um jogo e pergunta se ele entende, ao que Gaiwan, arrogantemente diz que “acha que sim”.
“Na mitologia celta, o Jogo da Decapitação auxilia o verdadeiro herói a provar a sua coragem […] ” (FONTE: Adriana Zierer. SIMBOLOGIA DA CABEÇA CORTADA ENTRE OS CELTAS E ALGUMAS ANALOGIAS COM O MITO DA GÓRGONA). Na cultura céltica, o berço das histórias arturianas, há indícios que a cabeça cortada de seu inimigo lhes concedia poder, o que culminaria com o discurso dado pelo Cavaleiro, que fala em glória e riqueza. “A cabeça simbolizava, assim, a força e o valor do adversário, que os passava ao possuidor.” (STERCKX, 2009, p.351).
Ou seja, o ato de Gawain não é deliberadamente aleatório, mas sim o seu desespero em demonstrar coragem e honra. Então, tecnicamente, sim, ele entendeu o jogo. Mas, ao longo da narrativa, vemos que ele entendeu apenas a superfície. O ano passa rapidamente, e Gawain precisa ir de encontro ao seu destino e cumprir sua promessa, de maneira que ele possa, finalmente, se tornar o cavaleiro que ele acha que irá se tornar ao final da aventura.
“A aventura é o instrumento para superar a contradição que se estabeleceu entre o ideal de vida e vida real.” [FONTE: Yvain, v; 6044]
Generosidade
O primeiro teste a ser enfretado pelo jovem é o da generosidade.
Antes de tudo, a palavra “generosidade” significa “virtude daquele que se dispõe a sacrificar os próprios interesses em benefício de outrem.“, e, lembrando dos símbolos obviamente cristãos espalhados pelo filme desde o seu início, lembrei da parábola do Bom Samaritano. Essa história fala de um homem que é o único que interrompe a sua jornada para ajudar a um completo desconhecido. Além disso, “a moral da cavalaria cristã deve acontecer justamente nesses meios, com a afirmação da necessidade do socorro às vítimas de injustiças, o resgate dos sequestrados e a restituição da ordem da Cristandade.” (Mello (1992))
Voltando ao momento da história, Gawain está passando por um campo repleto de corpos, onde obviamente houve uma batalha – o que bate de frente com o ideal de Camelot de que Artur levou a paz e a prosperidade para as suas terras -, e encontra um jovem ‘catador’, que parece estar procurando por algo. O protagonista usa o rapaz para pedir a direção correta – o norte -, sem parar para ajudar ou mesmo oferecer algo ao menino, sem nem mesmo apiedar-se do fato de que ele perdeu sua família naquela batalha. O jovem catador implora por uma recompensa até que Gawain lhe joga uma moeda, em uma ação que está estampada em sua feição que ele acha que é benevolente. Sua fala é arrogante: “Aqui. Bondade.” Logo em seguida, após falhar com o primeiro dos códigos, ele tem o futuro do Bom Samaritano: é atacado pelo jovem catador e seus comparsas, derrubado, amarrado e roubado.
Aqui é importante analisar facetas do nosso protagonista que já nos foram apresentadas: a passividade, a sua ingenuidade, sua falta de experiência de vida. Gawain não é acostumado a passar a necessidade que seja, e mesmo seus desejos mais profundos não passam de sonhos infantis ao não se empenhar por eles. Voltando ao momento em que estamos da sua jornada, se ele ficar parado e não fizer o que precisa fazer, morrerá ali mesmo, sua carne alimentando a terra e seus ossos como enfeites bizarros para a floresta. Então ele toma seu primeiro ato de ação genuíno na vida, esforçando-se para chegar até a sua espada, uma das poucas coisas que deixaram para trás, e cortar as cordas que atam suas mãos, machucando-se no caminho. Porém, ao contrário do que se espera, isso não o para, ele ainda é impelido pela força sobrenatural da sobrevivência humana. E então, livre das amarras, ele veste novamente o seu manto amarelo e parte em busca de abrigo, alguém, qualquer coisa que o tire dali ou o ajude.
Antes de passarmos para o próximo item da lista, gostaria de dizer que a cena específica em que o mostra deitado amarrado como um esqueleto, sua natureza humana perecendo frente à natureza selvagem, lembrou-me de duas cartas de tarot. A primeira delas foi a Morte, o 3º maior Arcano, e que simboliza uma grande transformação na vida do consulente – podendo ser ela boa ou ruim. A segunda carta foi O Enforcado, que representa a sujeição e o sacrifício aos quais são submetidos todos aqueles que perseguem um ideal. Claro, é uma leitura grosseira das cartas, mas foi o que me lembrou.
Cortesia
Gawain encontra uma cabana que parece abandonada há muito tempo. Descobre um cama lá dentro, e ali dorme até ser acordado por uma mulher. Novamente, as cores de fundo são sempre tons que tanto trazem sensação de desconforto quanto como de melancolia.
Ali está o seu novo desafio, na forma de Winifred. Ela pergunta a Gawain o que ele está fazendo em sua cama, ao que o jovem pede mil perdões, e responde que está indo para casa. Aqui temos mais uma falha exposta: o da falta de perseverança. Gawain já quer ir para casa, e mal chegou na festa!
Winifred então pergunta se ele perdeu o seu caminho, ao que ele responde que sim. Se formos pensar direitinho, Gawain sai de Camelot cheio de confiança, com um ego inflado, principalmente após passar um ano sendo uma “lenda” por seu feito de ter cortado a cabeça do Cavaleiro Verde. Depois de uma vida de superproteção, Gawain acha que a aventura será fácil e simples, afinal, nas histórias, tudo parece ser descomplicado quando não se está participando, com conflitos rapidamente resolvidos. Em sua mente imatura, basta chegar à Capela Verde e terá a honra que tanto deseja.
Winifred diz que também perdeu algo e pede ajuda para encontrá-lo. Se Gawain fosse um cavaleiro e vivesse sob o código que ele idealiza, teria prontamente se oferecido. Cortesia, em seu significado, é “Aquilo que é oferecido, como prova ou sinal de amabilidade“. Gawain não é gentil, nem mesmo bem-educado com a senhora da casa. Ele pergunta o que irá ganhar em troca ao ajudá-la. E isso mesmo após ela contar que teve sua cabeça cortada por um homem que queria violá-la (e deixa implícito que ele provavelmente o fez depois de cortar-lhe a cabeça) e a teve jogada no rio, onde não conseguia ir para recuperá-la. Ainda assim, Gawain não quer ajudá-la sem que haja algo em troca, ao que ela retruca “Por que você pediria isso? Por que você o faria?“. Gawain se envergonha do próprio comportameneto egoísta e se joga no lago em busca da cabeça da jovem.
Gawain, assim como os outros cavaleiros, só quer a honra por vaidade, e seguir o código é difícil para alguém que só quer um acessório.
Winifred ou Santa Vinifrida (em português) foi uma mártir galesa do século VII que teve a cabeça separada do seu corpo e jogada em um lago, onde depois foi recuperada e ela teria voltado à vida. Esse lago passou a se chamar Holyhead ou Holywell no País de Gales, e acredita-se ter poderes de cura. No filme, de acordo com o diretor, “(…) Winifred o está empurrando para a integridade, para a decência e o cavalheirismo.” E ele continua: “E as coisas cósmicas que você vê aqui, (…) quando Dev emergisse desta lagoa, queríamos que sua visão de mundo mudasse. Cada encontro que ele tem neste filme o muda e o aproxima da morte. E então aqui ele está tocando o cósmico.“.
Um detalhe que achei interessante foi o uso das cores quando Gawain mergulha. Ao entrar na água, tudo está azul – o que já é de se esperar, pois é a cor que associamos a ela. Mas, na tradição antiga, o azul era uma cor que simbolizava o feminino, assim como a água seria domínio da mulher. Já o vermelho pode significar mudança e é o “oposto” do azul, que tende ao passivo e ao delicado. Lowery também pontua que o vermelho é para significar, literalmente, sangue e, naquele momento, era necessário.
Logo após devolver a cabeça ao corpo, o ambiente, antes escuro, repetinamente é atingido por uma luz – que entra por uma janela atrás de Gawain, iluminando suas costas e o esqueleto na cama, uma provável referência à Santa Winifred e, talvez, à mudança que se inicia dentro dele.
Apesar das adversidades que enfrenta em seu caminho, as provações aos quais já falhou, Gawain falha novamente em ser cortês quando se encontra no castelo do Lorde e sua Senhora (nomes não são mencionados). O dono da casa recebe Gawain com toda a amabilidade, de maneira cortês, e a única coisa que pede em troca é que, o que quer que o jovem receba naquela casa, ele dê para o lorde. Porém, na hora de ir embora, ele sai de lá praticamente fugido, e só devolve uma coisa – um beijo, mentindo sobre a faixa verde que recebeu.
Amizade
A jornada de Gawain é solitária, indo de encontro com muitas histórias de aventuras fantásticas que conhecemos. A estrada do jovem é a do autoconhecimento, e o foco é exclusivamente nele na maior parte do tempo. Sua vida, até então sem sentido e feita apenas para diversão e prazer, dá reviravoltas inesperadas a cada novo passo que dá, levando-o a cometer erros e aprender lições que jamais aprenderia se continuasse em Camelot – o que leva a uma teoria sobre mommy issues, mas veremos depois.
Aparece uma raposa em seu caminho, logo após seu interlúdio com Winifred. Porém, ela só começa a acompanhá-lo depois que ele está andando por encostas enevoadas em seu subtom azulado, sempre nos lembrando da melancolia e da solidão da jornada.
“A raposa simboliza não apenas a astúcia dada pela inteligência, mas também a capacidade de encontrar soluções para novos problemas que surgem. Além disso, a raposa ensina-nos a capacidade de nos tornarmos um com o meio ambiente.
No simbolismo celta, a raposa era um guia e era reconhecida pela sua sabedoria. Os celtas dizem que a raposa conhece as florestas intimamente, e é por isso que seria um grande guia no mundo espiritual.” (Fonte: Simbologia da raposa)
A raposa, durante boa parte do caminho de Gawain o guia e o ajuda, inclusive no momento em que ele demonstra outro de seus defeitos, a preguiça, ao esbarrar em gigantes e pedir carona. Sua amizade sofre um pequeno interlúdio enquanto Gawain se encontra no castelo do Lorde, no qual ela foge – e, no futuro, o próprio Lorde a guia novamente até o rapaz. O rompimento da amizade, ou seja, sua falha final, vem da tentativa desta de salvar Gawain de seu destino. Citando a estadia de Gawain no castelo, há uma teoria de que a raposa também simbolizaria a tentação apresentada a ele, pois no conto original, ele é referido como a raposa – sendo necessário ser esperto o suficiente para escapar ou ser pego. No caso, sabemos que ele é pego pela Senhora, que, no momento em que isso acontece, ela lhe entrega a faixa que irá protegê-lo.
A amizade com o Lorde do castelo também acaba, pois Gawain cede à tentação, tendo caído na armadilha da Senhora, e falha em devolver a cortesia – há um entendimento entre ambos que o Senhor lhe dará o melhor de sua caça, desde que Gawain lhe dê tudo o que receber na casa. O beijo recebido por Gaiwan pela Senhora e dado ao Lorde é pode ser uma alusão a Judas, pois ele o está traindo ao esconder a faixa.
Castidade
Já sabemos desde o início do filme que Gawain não tem nada de virgem, puro ou o que for. Sua primeira cena é, inclusive, dentro de um puteiro, onde passou a noite e conhece a todas ali – tendo sua favorita, Essel. Quando o jovem está no castelo, ele tem a surpresa de ver na Senhora o rosto de Essel.
A Senhora é uma permanente tentação. O modo como se comporta, como se refere a ele, as coisas que pede. Sua cor primária é azul, que apesar de toda a conotação melancólica ou depressiva que costuma trazer, também simboliza o poder e o feminino. E, nessa parte da história, Gawain volta a usar cinza. Nada é decisivo no cinza, tudo é vago, é a cor onde o nobre branco está sujo e o poderoso preto está fraco. Também está relacionada ao enfraquecimento. Perante tal mulher, o protagonista mal tem chances. Aliás, a mulher é sempre vista como tentação – um dos problemas narrativos das histórias arturianas e de cavalaria, no geral, mas não vem ao caso.
Perto dela, temos cenas que demonstram o seu poder. É uma mulher que não somente sabe ler e escrever, como se dá o poder de alterar as histórias de maneira a melhorá-las; sabe fazer retratos, que nada mais são do que uma espécie de fotografia – algo que vai além do contemporâneo; entende de filosofia e o seu monólogo sobre a cor verde é uma das coisas mais importantes desse filme. Em determinado momento, a Senhora se aproxima de Gawain, que utiliza o que chamamos de token – um símbolo, dado a ele por Essel, de amor. Porém, ao ser questionado sobre, ele admite não reconhecê-lo como tal. E a Senhora o arranca de seu pescoço, em mais uma demonstração de poder.
Na cena da conversa entre anfitriões e convidado, a Senhora dispõe sobre a mesa uma carta de tarot muito peculiar, cuja leitura parece se dividir entre as cartas O Diabo ou A Imperatriz. O Cavaleiro Verde é frequentemente associado ao demônio, enquanto a carta da Imperatriz é ambígua. Ao que parece, pela cena do filme, a pessoa para o qual o baralho está sendo tirado está prestes a se ver fora das garras negativas do Diabo ou que a pessoa está com um pézinho no ato de fazer merda. No caso, o que se prova é que Gawain acaba falhando miseravelmente em mais um dos códigos de honra dos cavaleiros: a castidade.
A Senhora vai aos seus aposentos, em uma cena, novamente, repleta do seu poder, da sua feminilidade, totalmente a favor de apenas vê-lo falhar. Ela lhe dá a faixa de proteção, ao mesmo tempo em que o humilha dizendo “Você não é um cavaleiro“, e não somente por quebrar o voto de castidade, mas por aceitar o que não deveria: uma forma de burlar seu compromisso com o Cavaleiro Verde.
Devoção
Novamente, sabemos desde o princípio que Gawain não é alguém religioso, ou mesmo alguém que se dedica ao que seja. Uma devoção religiosa passa longe de qualquer intenção dele, e até mesmo uma outra tradução para “piety”, mais nova, que se refere a piedade, também não faz parte da sua personalidade.
Saindo do castelo do Lorde, tendo falhado em todas as suas provações até ali, ele segue até a Capela Verde em tempo hábil. Ali está sua última chance de redenção, a esperança toda que guardava dentro de si de conseguir honra e tornar-se um cavaleiro de verdade, ser uma lenda. Mas, sabemos, ele tem um truque guardado na manga para trapacear o compromisso.
Para essa virtude, ele já começa falhando.
Vemos uma escolha entre uma vida infeliz e vazia e a morte honrosa. Seu embate com o Cavaleiro Verde não é justo, pois traz consigo a faixa e, em uma cena muito sutil, o rosto desde vai mudando, perpassando por todas as pessoas aos quais Gaiwain conheceu até tornar-se o dele próprio, tornando-se um eco do que Winifred lhe disse, ao avisá-lo sobre o Cavaleiro Verde ser alguém que ele conhece. Aqui eu não pude evitar de me lembrar da cena do treinamento de Luke Skywalker em O Retorno de Jedi, quando este entra na caverna e, ao enfrentar seu algoz, descobre que o seu inimigo é ele mesmo e que, dentro de todos nós, há o lado da luz e o lado sombrio, e assim podendo enxergar o mesmo em seu pai – o temeroso Darth Vader.
Depois de todo esse tempo de filme, podemos alegar que, sim, Gawain é o seu próprio inimigo em A Lenda do Cavaleiro Verde, pois está sempre falhando e sucumbindo aos seus defeitos – e temos que admitir, é mais fácil ser assim do que completar a tabelinha de virtudes exigidas pelos cavaleiros da Távola Redonda. E aquele é o momento decisivo, se ele vai deixar o Cavaleiro Verde devolver o que lhe foi dado ou não. Gawain quer viver e tornar-se rei. Mas também quer a honra para satisfazer a sua vaidade. E aqui trago um questionamento: o que exatamente foi dado? Foi literalmente o corte da cabeça ou algo mais? Não temos como saber se a história levou o protagonista a perder a cabeça ou se foi apenas um trocadilho do Cavaleiro Verde.
Agora que passamos por toda a jornada do protagonista de A Lenda do Cavaleiro Verde, vamos para tópicos finais que devem ser pontuados.
A mãe
Morgana é a irmã de Artur, mãe do seu único herdeiro, Gawain, um jovem irresponsável, sem experiência de vida e que, se continuasse como estava, iria perecer sem nunca se tornar um cavaleiro ou um governante digno. Então ela parece dar uma “mãozinha”, torcendo pelo filho, ao mesmo tempo em que teme por ele. Ela convoca o Cavaleiro Verde, sabendo que Gawain iria pular na primeira oportunidade que aparecesse para se tornar honrado aos olhos das grandes lendas ali presentes.
Pequenos detalhes nos mostram o quão poderosa ela é. Primeiro, em sua preparação para a convocação do Cavaleiro, reunida com mulheres que não se sabe se são suas filhas ou irmãs ou somente acólitas. Ali, suas cores são dourado e azul, uma combinação que grita poder. Mas, para comprovar que não há malícia ou maldade em seus atos, Morgana utiliza-se de azevinho para sumonar o adversário de seu filho, planta essa utilizada nas festas cristãs e é um símbolo de paz.
Durante toda a narrativa de A Lenda do Cavaleiro Verde, vemos pedaços de Morgana na trajetória do filho, seja em sonho, na forma da velha vendada ou até mesmo nos últimos momentos de amizade entre Gawain e a raposa, que fala com a sua voz, em pleno desespero: Volte para casa.
Ao mesmo tempo em que Morgana deseja o sucesso do filho, ela teme por sua vida. Ser mãe é uma tarefa muito difícil. Temos que criar nossas crianças para o mundo, ao mesmo tempo em que as queremos debaixo da nossa asa para protegê-las dos perigos do mundo. No fim, ela respeita a decisão dele, mas sempre esteve lá.
O verde
Finalmente entrando na simbologia do verde. O Cavaleiro Verde, diferente do conto original, não é um homem vestido com essa cor, e sim um ser obviamente místico, humanóide, feito de natureza pura – que se comprova quando ele baixa o seu machado, criando grama ou algo parecido imediatamente no chão de pedra.
O verde é automaticamente associado à natureza. Em um monólogo feito pela Senhora do castelo, ela fala sobre o verde de maneira sublime: “Mas verde é a cor da terra e das coisas vivas. […] Decoramos os corredores com isso e tingimos nossos lençóis. Mas se vier rastejando pelas pedras, limpamos tudo o mais rápido possível. Quando floresce sob as nossas peles, nós sangramos. Quando nós, juntos, descobrimos que nosso alcance excedeu a nossa compreensão, nós cortamos, nós acabamos com isso, nós passamos por cima, e sufocamos com nossas barrigas, mas ele retorna. Ele não demora, não espera uma trama ou uma conspiração. Puxe-o pelas raízes hoje e amanhã, lá está, rastejando pelas beiradas. Enquanto procuramos pelo vermelho, o verde está vindo. Vermelho é a cor da luxúria, mas o verde é o que a luxúria deixa para trás, no coração, no ventre. Verde é o que fica quando o fogo se esvai, quando a paixão morre, quando morremos, também. Quando forem, suas pegadas se preencherão com grama. O musgo cobrirá a sua lápide, e quando o sol nascer, o verde estará por toda parte, em todas as suas tonalidades e matizes. Esse verde ultrapassará a tua espada, teu dinheiro, tuas muralhas e tente o quanto quiser, tudo o que ama sucumbirá a ele. Tua pele e ossos. Tua virtude.”
Na tradição antiga europeia, demônios em geral eram verdes (e também pretos). Isso porque qualquer coisa que possua pele esverdeada não pode ser humana – e nem sequer mamífero. Na mesma linha, fantasmas e almas penadas tendem para o verde. O que é morto, o esgoto, a sujeira também podem ser verdes.
Várias cenas possuem a paleta verde. Roupas. A vastidão. Detalhes. O verde está por toda a parte do filme The Green Knight. “A perspectiva da matéria da Bretanha sempre vê na floresta o lugar do desencontro, onde se busca refúgio, fuga, proteção e iluminação. Também é pela floresta que acontece a aventura e o encontro com o sobrenatural. É da floresta que chegam os verdadeiros desafios espirituais e físicos. É na solidão da floresta que o sentido da missão e do serviço na coletividade da corte pode ser encontrado, se perdido, ou aprofundado, se inseguro.” (Ciberteologia – Revista de Teologia & Cultura – Ano X, n. 48)
O Cavaleiro Verde é essa realidade do qual não podemos fugir. Já dizia Gênesis 3:19:
“Com o suor do seu rosto
você comerá o seu pão,
até que volte à terra,
visto que dela foi tirado;
porque você é pó,
e ao pó voltará“.
Outro detalhe de The Green Knight é que, se prestarmos atenção, todos os eventos acontecem no inverno, uma amostra do poder da natureza, que também pode ser hostil. E, curiosamente, acontecem durante o solstício de inverno, mas chamavam já de Natal pois, na época, já havia a influência da igreja de engabelar todo mundo e dizer que na verdade era o nascimento de Cristo, sendo que eles apenas não queriam que os “pagãos” continuassem comemorando o de sempre.
“A floresta é o lugar do sentido, da travessia daquele herói que é traidor e adúltero no romance cortês, e que deve encontrar sua redenção. É o lugar sobrenatural, mágico e miraculoso daquele que deve encontrar o Graal, salvar a donzela, se apresentar na capela perdida, enfrentar o animal fantástico único.” (Ciberteologia – Revista de Teologia & Cultura – Ano X, n. 48)
São tantas as interpretações que mal caberiam aqui.
E aí, já teve o prazer de assistir A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight)? Concorda com as interpretações? Discorda? Deixa aí nos comentários enquanto não sai o Final Explicado!